“Não tens necessidade de meu perdão, nem eu tampouco do teu’, disse Cátia a Mítia. ‘Que me perdoes ou não, a lembrança de cada um de nós ficará como uma ferida na alma do outro’, prosseguiu ela, febrilmente. ‘O amor desapareceu, Mítia, mas o passado ainda é dolorosamente querido para mim. Que isto fique registrado (...). Agora, você ama outra mulher, e eu amo outro homem, no entanto, vou te amar para sempre’, suspirou ela, com uma voz trêmula. ‘Sim, e eu te amarei (...)’, retrucou Mítia, parando a cada palavra. ‘E será assim, para todo o sempre’. E assim trocavam eles essas frases quase absurdas e exaltadas, mentirosas talvez, mas eram sinceros e tinham em si uma confiança absoluta”.

Essa passagem do clássico romance “Os Irmãos Karamázov”, de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), é sempre um convite necessário à reflexão a respeito do que nosso passado afetivo pode revelar sobre nós.

Porém, em uma era em que as escalas de avaliação se estendem até mesmo às relações românticas, será mesmo possível que o histórico sentimental de alguém possa servir como um sinal de sua personalidade amorosa? O tema tem gerado discussão entre especialistas.

“Numa área como a do relacionamento amoroso, é comum que as pessoas sejam propensas a repetir comportamentos ou formas de pensar que produziram no passado”, explica o psiquiatra e terapeuta cognitivo comportamental Rodrigo de Almeida Ferreira.

Rodrigo esclarece que por agirmos muitas vezes no chamado “piloto automático”, é natural que venhamos a insistir sempre nos mesmos hábitos e condutas. Com isso, é bem provável que deixemos, sim, “pedaços da nossa personalidade” com as pessoas que amamos ao longo da vida.

“Nossas reações não são determinadas por situações, mas sim pela forma com que a gente interpreta os acontecimentos vividos. E essa interpretação vai mudando na medida que temos diferentes experiências. Portanto, cada relacionamento ou cada pessoa que a gente conhece e com quem a gente se relaciona intimamente acaba mudando um pouco não só a forma como enxergamos nossas relações futuras, mas também como encaramos o mundo ao nosso redor”, propõe Ferreira.

Segundo estudiosos, outra tendência comum é que nossas memórias registram muitos dos relacionamentos que vivemos como “traumas”, o que acaba influenciando negativamente nossa percepção sobre como amamos e somos amados.

“Nosso cérebro é predisposto a observar mais as ameaças do que as coisas boas na nossa vida”, revela a psicóloga Renata Borja, que é mestre em relações interculturais e especialista em terapia cognitivo-comportamental. Ela aponta que isso acontece como uma estratégia de defesa contra possíveis aflições futuras. 

“Quando vivemos uma relação desagradável, por exemplo, há uma reação em nós de também registrar mais coisas ruins em decorrência. Achamos que sempre será assim, que nada de bom mais pode acontecer. É uma forma de autoproteção, de manutenção da espécie, de sobrevivência mesmo. Isso deixa muito claro que a segurança é o ingrediente que buscamos de todos os nossos contatos humanos”, afirma.

A psicóloga clínica Márcia Moreira concorda e acrescenta que esses ‘gatilhos’ são na verdade subterfúgios necessários para que nossa saúde afetiva se mantenha ativa.

“Tudo aquilo que gera dor emocional acaba se fixando em nossa memória. Portanto, esses mecanismos de defesa são o que nos ajudam a lidar com todas as situações de risco que nos rodeiam. São elas, por exemplo, que nos blindam de toda dor e baque do passado, além de muitas vezes nos livrar também de qualquer prejuízo que possa fragilizar nossas relações no presente e futuro”, analisa.

Influência?

Mas será que a opinião de ex-cônjuges tem o mesmo peso para influenciar a forma que vivemos nossa vida amorosa? A psicóloga Carolina Braz, especialista em sexualidade humana, acredita que sim.

“A quebra de um relacionamento, infelizmente, desperta reações e sentimentos de insegurança e culpa. Esse tipo de situação eventualmente levará a comentários e opiniões insensatas e infundadas. Dada a importância e o papel do cônjuge na sua vida, ele pode, sim, afetar a sua capacidade de raciocínio, influenciando a sua percepção do mundo e das suas relações”, aponta.

Para ela, a insegurança e a baixa autoestima também levam muita gente a se preocupar demasiado com o histórico amoroso de seus parceiros – o que acaba, em muitos casos, prejudicando o desenvolvimento e o sucesso de seus relacionamentos.

“Quem sente o ciúme retroativo imagina (e toma como verdade) que o seu companheiro foi mais feliz no passado do que é atualmente, ao seu lado. Nessa crença, a tormenta é considerar que jamais conseguirá corresponder às expectativas do seu parceiro”, diz.

E essa idealização do ex – e toda comparação feita com ele – tende a minar ainda mais a autoestima de quem sofre.  

“O sentimento pode se intensificar, dependendo de quão profunda ou duradoura foi a relação anterior do companheiro (se tem filhos e se o término foi amigável), e do motivo para o fim – se foi por distância física, por exemplo, em vez de conflitos inerentes ao relacionamento”, destaca a profissional.

Carolina ainda reitera a importância de se entender o que está desencadeando esse tipo de comportamento para saber como reagir ao problema. “Se não sozinho, que seja com o apoio de um psicólogo”, aconselha.

Fantasmas do passado

Então, levando em consideração que todas as pessoas que amamos deixam pedaços de si na nossa personalidade, o que podemos fazer para escapar dos “fantasmas” e dos resquícios que muitas relações do passado geram?

“Eu diria que não é escapar, mas acolher, integrar e entender que isso faz parte da nossa história, da nossa vida”, destaca Rodrigo de Almeida Ferreira.  

“Se tem alguma lição para ser aprendida com tudo o que você viveu, então assimile esse aprendizado para não repetir o erro no futuro”, prescreve o médico.

“O importante é não tentar apagar a memória ou esquecer o passado, porque a gente é feito disso – tanto das coisas que fazemos certo quanto das que dão errado. Sendo assim, o segredo é sabermos integrar na nossa vida todas essas experiências de forma positiva. No fim das contas, isso é o que realmente importa”, resume.