A fronteira entre o público e o privado parece cada vez mais tênue. Nas redes sociais, temos a oportunidade de acompanhar o que parece ser a intimidade de amigos ou mesmo de desconhecidos. Algo entre ilustres convidados ou atrevidos voyeurs, sabemos o que acontece do “bom-dia” ao “boa-noite”. E, depois, ainda temos notícia de como foi o sono daqueles que seguimos. Algo entre anfitriões generosos e exibicionistas, compartilhamos com uns tantos conhecidos e estranhos nossas rotinas, opiniões, talentos e, quem sabe, também as nossas frustrações e medos. Das vitórias às dores, está quase tudo posto. Ou melhor, postado.
Essa transparência que as redes aparentemente conferem à vida ordinária parece se forjar como característica da modernidade. Muito antes do advento das redes sociais virtuais, Carlos Drummond de Andrade já criticava o diluir dos limites entre o que é íntimo e o que é partilhado com a comunidade. Este é o tom da crônica “A Casa Habitável”, em que o poeta critica o modelo arquitetônico moderno muito em voga a partir da década de 30. “Até agora a casa não era só o lugar do repouso e do café matinal, em chinelas, com a alegria dos filhos promovendo desordens no alpendre. Era também, e principalmente, o lugar onde o indivíduo se abrigava do mundo… Agora, surge-nos o sr. Pierre Chareau (arquiteto e design de interiores francês) e instala, numa casa de vidro, um homem sem mistério e sem intimidade…”, lê-se no texto.
Em um primeiro momento, a analogia entre o comportamento online e as críticas ditas em “A Casa Habitável” parece óbvia – e até tentadora. Mas até que ponto, de fato, as redes sociais põem a nu o que é privado? Na avaliação de Cinthia Demaria, psicanalista e pesquisadora da comunicação, ao mesmo tempo que podem dizer muito sobre nós e até nos expor excessivamente, as mídias digitais também são eficazes em esconder aquelas facetas que julgamos menos elevadas e dignas. Em resumo, as dinâmicas próprias dos espaços virtuais nos permitem selecionar que tipo de imagem queremos transmitir.
Não que esse fenômeno já não acontecesse há muito tempo. “Instintivamente, nós, seres humanos, sempre criamos e interpretamos diversos papéis sociais. Para sobreviver ou para sermos aceitos em diferentes ambientes de socialização, nós somos diversas pessoas em um único dia. Isto é, se no trabalho exercemos uma imagem, em casa, com a família ou em ambientes sociais exercemos outras”, analisa Cinthia, acrescentando que a virtualidade é mais um meio de expressão desses papéis, permitindo um recorte do que se quer apresentar ao outro.
Contudo, ainda que essa modulação de comportamentos seja um artifício antigo, “é notável que as dinâmicas virtuais favoreceram e potencializaram esse fenômeno, uma vez que um dos propósitos desses ambientes é que sejamos vistos”, pondera a estudiosa. Para ela, nesse processo de seleção, filtro e recorte do que vamos mostrar ou esconder, acabamos construindo personagens que dizem muito mais sobre como queremos ser vistos que sobre quem somos efetiva e integralmente. É como se, pela vitrine de um feed impecável, oferecêssemos ao público uma versão aprimorada de nós mesmos.
“Podemos dizer que a maioria das pessoas que têm perfil nas mídias digitais sustenta um personagem, seja para deixar a vida mais bonita ou mais triste, seja colocando arte na dor ou na felicidade… Certo mesmo é que, recorrendo a esses filtros e recortes da realidade, vamos modelando a imagem que desejamos passar aos outros”, opina.
Cinthia acredita que podemos ser levados a investir na construção de uma quase autoficção por diversos fatores, podendo indicar desde um desejo de autopreservação até problemas de autoestima. Ela lembra que há quem se sinta pressionado a sustentar um estilo de vida pelo qual se notabilizou. Algumas pessoas fazem desses perfis, que foram meticulosamente construídos, uma fonte de renda. Esse comportamento virtual começa a se tornar um problema quando se transforma em motivo de sofrimento ou o centro da vida do sujeito. Há casos, por exemplo, de indivíduos que chegam a divulgar conteúdos que não condizem com a realidade, dizendo ter ido a lugares onde nunca estiveram ou simulando ter vivido experiências que, na verdade, nunca viveram.
De alguma maneira, é como se as redes, ao possibilitar a criação de uma imagem convincente de si, também seduzissem os usuários a exagerar nos temperos da autoficção. Para se ter uma ideia, uma pesquisa divulgada em 2019 pelo site Booking.com revelou que 14% dos brasileiros já postaram fotos de hotéis luxuosos fingindo que estiveram lá e 18% das pessoas já publicaram um clique da viagem anterior como se fosse atual. Além disso, pelo menos 10% dos usuários já fingiram um passeio sendo que, na verdade, estavam em casa. Outro estudo realizado pela Universidade de Massachusetts mostrou que, quando as pessoas se comunicam via mensagem de textos, elas mentem três vezes mais do que quando conversam pessoalmente. Se a comunicação é por e-mail, a probabilidade de mentir é cinco vezes maior.
Na avaliação do psicólogo Luciano Pinheiro, as ferramentas virtuais se tornam mais uma possibilidade da manifestação da mitomania, um tipo de patologia em que a pessoa sente um desejo compulsivo de mentir sobre assuntos importantes e triviais, independentemente da situação. Ele acredita que esse tipo de comportamento se faz mais presente nas redes sociais por elas facilitarem a “venda” de uma imagem que não é compatível com a realidade. “Uma pessoa pode registrar fotos sorrindo, onde muitas das vezes o sorriso só acontece na hora do clique. Mas o mitômano vai além disso, pode fazer check-in em lugar aonde nunca foi ou fazer montagens em fotos contando detalhes de uma viagem que não aconteceu e com pessoas que nunca conheceu”, explica.
Minientrevista
Jennifer de Paula
Diretora de marketing e gestão da agência de mídia internacional MF Press Global
1. Muitas pessoas, mesmo que sem ter consciência do que estão fazendo, acabam criando verdadeiros personagens em suas redes sociais. Viajante, saudável, cervejeiro... São muitas as possibilidades. Acredita que as dinâmicas próprias das redes contribuem para que as pessoas modelem esses perfis?
Acredito que, por uma característica do tipo de sociabilidade que desenvolvemos, a capacidade de enganar vem se tornando cada vez mais comum, sendo um artifício capaz de deixar mais fácil a convivência com o outro. Até porque ninguém está preparado para lidar com pessoas “honestas o tempo todo”. Nas redes sociais, isso é elevado, pois é como se precisássemos recorrer a essa técnica para nos relacionar com diversas pessoas simultaneamente.
2. Em termos de estratégia, ter um personagem convincente pode ser interessante?
Como profissional da área de gestão de carreiras, sempre digo aos meus clientes, não importa a profissão deles, que histórias falsas ou contadas no momento errado não costumam ser absorvidas de forma natural e convincente. Por outro lado, os posts que parecem mais naturais geralmente geram maior engajamento. Dai o grande sucesso do TikTok, uma plataforma que nos faz ter a sensação de estarmos mais próximo de nossos ídolos, mesmo que isso seja apenas algo ilusório.
3. Ao mesmo tempo, qual o limite dessa performance? Isto é, será que dá para bancar nas redes um perfil que nada tem a ver com o que somos fora dela?
É muito difícil que alguém consiga sustentar uma máscara por muito tempo. Acredito que uma pessoa terá dificuldade de manter um personagem criado apenas para tirar o máximo de vantagem possível dos outros, seja social, financeiro ou emocionalmente. E o pior: ao tentar bancar essa imagem, podemos nos desconectar de nós mesmos. Para finalizar, ressalto a importância de o sujeito planejar uma estratégia de marketing em que, para promover seu serviço, marca ou produto, não precise expor aos seguidores 100% de sua real intimidade. Assim como na vida real, onde nos comportamos de formas diferentes na presença de nossos pais, patrões ou amigos, podemos mostrar diversas facetas também nas redes sociais. O importante é não passar do limite e se afundar em um mar de mentiras, fazendo dos ‘likes’ o seu único oxigênio.