Ainda que esteja em um processo de recuperação de audiência, a novela “Um Lugar ao Sol”, que ocupa o horário nobre na grade da Rede Globo, tem alcançado, diariamente, grande repercussão nas redes sociais ao abordar temáticas que não costumam frequentar a TV aberta no Brasil. Caso da cena em que Rebeca, interpretada por Andrea Beltrão, é flagrada se masturbando pelo marido dela, Túlio, personagem de Daniel Dantas. Na última semana, mais uma vez, o tema do prazer feminino foi abordado. Na ocasião, o casal tentava iniciar uma transa quando, para se sentir estimulado, ele passou a assistir a um filme pornográfico sem que ela soubesse.
Na trama, Túlio vive uma relação extraconjugal acreditando que a mulher não desconfia do caso. Ela, por sua vez, inicia um relacionamento com um homem mais jovem, Felipe, vivido pelo ator Gabriel Leone. Os dilemas de uma mulher adulta que vive uma crise no casamento enquanto, em uma atitude quase subversiva, começa a explorar o próprio desejo são esmiuçados em cenas das sessões de terapia que a personagem frequenta, sendo atendida por Ana Virgínia, interpretada por Regina Braga.
A psicanalista e sexóloga Lelah Monteiro celebra que um produto cultural com o alcance de uma novela se proponha a debater o prazer feminino, tema poucas vezes abordado com profundidade na televisão. “Eu posso dizer com toda segurança, seja como terapeuta, como terapeuta de casais ou como mulher que está na faixa etária da personagem, que é muito importante que esse tema seja abordado e é muito bom que possamos falar disso abertamente”, diz.
Falando especificamente sobre a cena em que Rebeca se masturba, Lelah celebra que um tema ainda posto como tabu tenha sido tratado com naturalidade na trama. “E que bom que a gente pode se tocar e falar sobre isso”, diz. “Importante dizer que, mesmo em um casamento que esteja em boa fase, faz bem explorar o corpo e descobrir o que nos desperta o desejo. E se a relação está desgastada, em crise, considero esse gesto ainda mais crucial, uma vez que tocar a si mesmo tem efeitos terapêuticos, contribuindo para o autoconhecimento”, sinaliza.
Para o crítico Nilson Xavier, aliás, “o prazer feminino nunca antes foi tão longe em uma novela”. Em sua coluna no site TV História, ele tece elogios à abordagem do tema em “Um Lugar ao Sol” e afirma que, com delicadeza e sutileza, a questão está sendo discutida em todas as suas nuances.
Reynaldo Maximiano concorda. Roteirista e pesquisador de teledramaturgia, ele observa que a novela opta por uma perspectiva que destoa do que geralmente é feito na televisão. “Em termos históricos, o sexo é retratado sob forte peso moral”, pontua, inteirando que a temática das sexualidades aparece nas telenovelas de forma descontínua. “O sexo é um traço da ação humana. No campo da telenovela, ele eleva-se, pois, num duplo ambíguo mecanismo de dar visibilidade às mudanças que se operam no campo social, em termos da liberdade sexual; e de reforçar determinados interditos sociais relativos às mulheres, especificamente”, critica o professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Tecnologias, Comunicação e Educação da Universidade Federal de Uberlândia (PPGCE-UFU).
Para além da TV aberta, Maximiano lembra que as telenovelas brasileiras começam a chegar aos serviços de streaming, um espaço em que há maior possibilidade de avanços em termos de estética e linguagem. Nesse sentido, ainda que crítico à qualidade dramatúrgica da novela “Verdades Secretas 2”, exibida exclusivamente no Globoplay, ele acredita que há algo a ser celebrado na forma como romances homoafetivos foram tratados.
“É uma história descolada de quaisquer traços de verossimilhança e de conflito. Agora, são cenas importantes, sim, mas já se fala em uma versão editada para a TV, novamente, a aspecto da descontinuidade. Na TV, assepsia, porque a audiência é conservadora. Já no streaming, liberdade de abordagem, porque a audiência é mais qualificada. Neste ponto, o ator João Vitor Silva tem razão, a representatividade alcança mais audiência até pra abrangência do meio no Brasil”, comenta, fazendo referência a declarações do ator carioca que interpreta Bruno na trama. Em entrevista ao blog Na Telinha, do portal Uol, ele disse que o streaming permite largos passos rumo a uma maior representatividade, mas ponderou que vitória mesmo seria levar tais registros também para a TV aberta.
Linha do tempo
Embora tenha causado furor e grande repercussão, a cena de masturbação feminina em "Um lugar ao sol" não é inédita na história da telenovela brasileira
- Ainda que não exibisse o ato de autoprazer propriamente dito, em "O Bofe", de 1972, na Globo, a velha Stanislava Grotowiska, vivida pelo ator Zbigniew Ziembinski, tem cenas picantes quando, após se embebedar de xaropes, tem sonhos eróticos com um trapezista de circo.
- Em "Saramandaia", de Dias Gomes, exibida em 1976, na Globo, o prazer feminino é alegoricamente representado por uma reação incomum de Marcina, personagem de Sônia Braga. No caso, ela tem "calores" tão intenso que chega a incendiar objetos.
- Finalmente, em 1980, a novela global "Coração Alado", de Janete Clair, mostrou uma cena em que Catucha, vivida por Débora Duarte, se masturbava. Com o país vivendo sob uma ditadura, o capítulo incomodou os censores. Segundo Bia Braune e Rixa Xavier, no livro "Almanaque da TV", o capítulo foi apagado após a exibição da cena e as cópias do roteiro foram destruídas.
- Anos mais tarde, na extinta emissora Manchete, no ano de 1996, a novela "Xica da Silva" chocava a audiência levando ao ar uma cena em que a Violante, interpretada por Drica Moraes, logo na primeira semana em exibição, tem um sonho erótico com o noivo que morreu enforcado. A personagem se contorce na cama.
- O capítulo 6 de "Páginas da Vida", exibido em 2006, foi encerrado com o depoimento real da empregada doméstica Nelly da Conceição que descreve um orgasmo ao som de "Côncavo e convexo", na voz de Roberto Carlos. Nelly, uma mulher negra, então com 68 anos, enfatizou: “Moral da história: sou uma mulher de 68 anos que homem pra mim não faz falta. Eu mesma dou meu jeito”. Após repercussão negativa, o autor da novela, Manoel Carlos, e a Globo se desculparam pelo depoimento reconhecendo que “houve um excesso”. Na reprise da novela no canal Viva, neste ano, o depoimento foi cortado.
- A masturbação masculina também já foi atração dos noveleiros. Em 1989, a produção de "Top Model" emprestava humor ao tema. Na trama, quando o personagem Ringo, personagem de Henrique Dias, se trancava no banheiro para se masturbar, o pai e o irmão mais velho dele se juntavam para fazer tirar sarro do rapaz dizendo que, com a prática, as mãos dele se encheriam de pelos.
- Mais recentemente, em "Verdades Secretas 2", o Giotto, vivido por Johnny Massaro, se masturba vendo fotos do Matheus, interpretado por Bruno Montaleone, com quem tem um caso.
Minientrevista
Reynaldo Maximiano
Roteirista, pesquisador de teledramaturgia, professor do PPGCE-UFU e do IEC PUCMinas
1. Em termos históricos, como o sexo é retratado nas telenovelas brasileiras?
Em termos históricos, o sexo é retratado sob forte peso moral. Um dos maiores críticos de telenovela e estudioso do tema, o Arthur da Távola, descreve em seus textos que a telenovela, enquanto produto-programa, opera com quatro padrões: o mercadológico, o artístico, o produtivo-tecnológico e o ético-cultural. E, não raro, ela efetiva um diálogo conservador, quando se observa a televisão como prática cultural. Assim, o que observamos? A construção de um cânone. As telenovelas são herdeiras das radionovelas, do folhetim e do romance burguês. Assim, elas operam sobre a estética do conhecido, suas histórias são baseadas em seis elementos que constituem a natureza íntima de qualquer mito: o éthos, o problema moral; o logos, o problema da razão; a psyché, o problema da alma; o éros, o problema amoroso; o théos, a ideia de Deus; e o páthos, que expressa a enfermidade, o drama, a doença etc. O sexo nas telenovelas gravita nesse circuito, ora reforçando interdições, ora reforçando transgressões que são punidas. O mais interessante nesse debate é observar o tratado melodramático tradicional e conservador que investe no antagonismo entre dois modelos de mulheres, ao menos, a “mulher para casar, para ser mãe” e a “mulher-objeto para aventuras”. Elas dividem a atenção de um homem, geralmente um aventureiro ou inconstante que deve se decidir, em nome do amor. Dessa forma o conflito se instaura entre o padrão moralmente aceito e o condenado. A mulher dentro do padrão é “premiada” com o casamento. Já a mulher fora do padrão moral e religioso tem, pelo menos, duas alternativas canônicas: morte ou punição. O mecanismo da punição é severo e se assenta num estigma que ela passa a ostentar: uma cicatriz no rosto porque a fere na vaidade; ou uma deficiência ou enfermidade que a limita nos movimentos; a prisão ou internação que a priva da liberdade. Tudo isso é problemático, é preconceituoso, é machista, é capacitista, é limitador das potencialidades da telenovela. Há um forte fator de interdição patriarcal da sexualidade, da independência e do prazer.
2. Acredita que, ao trazer esses temas à tona, a telenovela provoca discussões nos lares?
Na verdade, eu creio que as discussões já estejam nos lares, ditos ou não ditos, debatidos ou não, esses temas estão nas nossas casas, de alguma forma e nós varremos para debaixo do tapete. Eu lembro de aparecer uma personagem gay numa novela e algum parente criticar em voz alta essa presença. Essa pessoa não estava só criticando a personagem ou a novela, ela estava dando um recado para quem estivesse perto que não admitia a existência de homossexuais e tentando controlar comportamentos.