Primeiro, veio o susto. Depois, a aceitação e, apesar dos olhares de reprovação, a decisão de se manter de cabeça erguida. Foi assim que a produtora de moda Luana Braz, 25, encarou a acne que surgiu em seu rosto já no início da fase adulta. E foi essa experiência que levou ela a conhecer e aderir de forma muito espontânea ao emergente movimento “skin positivity” ou “pele livre”, que combate a pressão social e estética e que defende o autocuidado como aliado do bem-estar – e não como uma busca obstinada por se encaixar em padrões de beleza irreais. “Eu já defendia a aceitação da pele antes de conhecer essa iniciativa”, explica, complementando entender que, para muitos, as manchas na pele, passageiras ou permanentes, têm a ver com questões profundas, que trazem repercussão para a autoestima e são causa de sofrimento. “Mas, para mim, não era a pele inflamada ou a presença de cicatrizes que iriam afetar a forma como eu me enxergo. Além do mais, um olhar mais amoroso para mim e para minha pele deixou o processo (do tratamento) muito mais simples e consciente”, garante.
Luana tem razão. A lida com a acne, embora seja algo absolutamente comum, é motivo de vergonha e está relacionada ao desenvolvimento de transtornos psicológicos diversos. “Há vasta literatura científica mostrando que, em casos mais graves, há implicações sociais, profissionais e psicológicas, como problemas com a autoimagem e até a depressão”, indica Edileia Bagatin, coordenadora do departamento de cosmiatria dermatológica da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD). Ela informa que cravos e espinhas são as manifestações clínicas da acne, considerada uma doença inflamatória que ocorre principalmente no rosto, no peito e nas costas – regiões do corpo em que há maior presença das glândulas sebáceas, estimuladas por ação de hormônios androgênicos, produzidos em maior escala por corpos masculinos.
Estimativas dão conta de que, na adolescência, por conta da ação hormonal, cerca de 90% das pessoas, sobretudo os meninos, apresentam acne, principalmente na região das bochechas e na testa. “É uma doença que tem uma evolução imprevisível. Pode estar tudo indo muito bem e, de repente, surge um quadro de inflamação, que pode deixar cicatrizes, principalmente porque as pessoas têm o hábito de mexer nessas lesões”, completa Edileia. Já na fase adulta, cravos e espinhas são comuns a 52% da população, afetando majoritariamente as mulheres e aparecendo mais na área próxima ao queixo e pescoço, como explica a dermatologista Michelle Diniz, preceptora do Ambulatório de Psoríase e Imunobiológicos da Santa Casa. Ela ainda acrescenta que existe outro tipo de acne mais comum em corpos femininos e que vai se manifestar já na menopausa. “Em todos os casos, os hormônios são o principal fator desencadeante”, indica.
Considerando-se os desdobramentos sociais e psicológicos advindos de um problema tão generalizado, Michelle vê com bons olhos o movimento skin positivity. Para a dermatologista, “é uma iniciativa importante porque se opõe à busca por um ideal de beleza que não existe”, assegura, ponderando que, embora a decisão de tratar ou não uma doença caiba ao paciente, abandonar completamente os cuidados com a pele é algo que potencialmente levará ao surgimento de cicatrizes permanentes – e é importante salientar que tampouco essa é a defesa de militantes pela “pele livre”. Para essas pessoas, as rotinas de autocuidado são, sim, importantes. O que muda são os objetivos: em vez de se empenhar em uma busca obstinada – e muitas vezes sofrida – pela “perfeição”, o foco é nutrir um olhar mais amoroso para si e normalizar a pele “imperfeita”.
Normalizar a pele ‘imperfeita’ é desafio ainda maior na era da selfie
A empreitada em defesa da normalização de rostos verdadeiramente humanos é especialmente desafiante em uma sociedade em que, não por acaso, smartphones chegam aos usuários pré-programados para tratar selfies, aplicando no rosto das pessoas efeitos de blur que escondem até mesmo os poros faciais. Um recurso, aliás, muito comum em redes sociais como o Instagram. E foi justamente nesse ecossistema que a empresária Kéren Paiva, 24, se notabilizou como uma das precursoras do “skin positivity” no Brasil.
“Tenho acne desde os meus 11 anos, hoje tenho 24. Nesses anos, passei por diversos tratamentos – desde procedimentos tópicos, passando por uso de antibióticos e até o mais forte, com a isotretinoína”, relata, emendando que se sentia frustrada recorrentemente. “Cada um desses procedimentos era apresentado e vendido a mim como se fosse a solução, mas eles não eram efetivos no meu caso”, diz. “Atualmente, me encontro em outro tratamento, que tem me ajudado a controlar a acne, mas (depois de conhecer o movimento ‘pele livre’) já não sinto mais aquela pressão enorme que eu sentia (de erradicar completamente as acnes)”, afirma.
Kéren conta que foi o contato com outros movimentos que defendem a normalização de corpos dissidentes que levou ela a conhecer o “skin positivity”. “A chave virou na minha cabeça através de uma amiga, a também mineira Layla Brígido, que fala sobre o body positive”, lembra, fazendo menção ao movimento que busca enfrentar o estigma associado a pessoas gordas e que desafia as formas como a sociedade apresenta e vê a saúde física. “Vê-la desconstruindo e questionando padrões foi o que me fez questionar sobre como me relacionava com a minha pele”, detalha.
Uma das primeiras pessoas a propor o debate sobre a aceitação da pele no país, Kéren se orgulha de receber, todos os dias, mensagens de pessoas que se sentem representadas e empoderadas, “conseguindo compreender que elas não precisam se sentir erradas ou culpadas, que podem se sentir livres”, sublinha. A empresária e influenciadora reconhece ainda um recorte de gênero nessa luta: alvos mais constantes da pressão estética, dado que seus corpos são vistos como públicos em função de uma lógica social machista, as mulheres sofrem mais se a pele delas não parece “perfeita”.
Fatores desencadeadores da acne
A dermatologista Ana Rosa Magaldi explica que, na vida adulta, a maior influência para o surgimento da acne são alterações hormonais, que podem ter causas diversas, incluindo transtornos psicológicos. Nas mulheres, um dos principais problemas associados ao distúrbio inflamatório da pele é o ovário policístico. Também é comum que a acne surja por ação dos hormônios androgênicos. “No momento em que estão em desequilíbrio, as glândulas sebáceas ganham um maior estímulo, e a pele fica mais oleosa, favorecendo o surgimento dessas lesões”, explica.
Membro da Sociedade Brasileira de Cirurgia Dermatológica (SBCD), ela lembra que um estudo realizado pela Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, demonstrou que o cortisol, hormônio associado liberado em situações estressoras, pode estimular a produção de glândulas sebáceas e ser uma causa potencial dos problemas cutâneos, como a acne.
Maquiagens e outros produtos cosméticos que contenham óleo em suas fórmulas, bem como a poluição, podem obstruir os poros e causar o aumento da oleosidade da pele, piorando o quadro inflamatório. “É importante utilizar produtos oil-free e não comedogênicos e sempre limpar o rosto, removendo completamente esses produtos, antes de dormir”, sugere Ana Rosa.
Alimentos com alto índice glicêmico também são associados à acentuação da gravidade da acne. “No caso do chocolate, por exemplo, o problema não é o cacau, mas o açúcar presente no produto”, comenta. E a lactose, em pacientes predispostos e com intolerância à substância, também pode levar à piora das lesões. Por isso, como ação preventiva, é essencial adotar uma dieta baseada na ingestão de alimentos integrais, orgânicos, frutas, vegetais e legumes, além de valorizar a hidratação.
‘Autoconhecimento’ foi palavra-chave no enfrentamento ao estigma relacionado à acne, diz produtora
A lida de Luana Braz com a acne veio de uma jornada de autodescoberta a que ela própria se propôs quando, há quatro anos, deixou de usar anticoncepcionais. “Meu corpo estava em modo economia de energia, digamos assim. É como se eu estivesse numa linha retilínea de humor, sem variações. Comecei a questionar se de fato conhecia os meus ciclos, e percebi que não, que não sabia como meu organismo reagia em um período fértil ou menstrual. Depois de muita pesquisa, conversas com ginecologista, tomei a decisão de parar”, relata. Foi quando surgiram, pela primeira vez, espinhas e cravos em seu rosto. “Então, fui procurar por dermatologistas para tentar entender o que estava acontecendo. Mas, inicialmente, nenhuma alternativa que me indicavam se encaixava com a minha decisão de abandonar os contraceptivos hormonais e de fazer uso de medicamentos que (pareciam para ela) agressivos”, diz, citando a isotretinoína, conhecida popularmente como Roacutan, nome comercial do remédio.
Diante do impasse, Luana preferiu abrir mão dos tratamentos sugeridos. “Eu prezo pelo respaldo médico, mas também por ter autonomia na decisão sobre o que é melhor para o meu corpo, sobre que tipo de procedimento me sinto confortável (em aderir)”, assegura. A produtora de moda seguiu investigando o problema, chegando à conclusão de que o surgimento da acne estava relacionado a fatores diversos, exigindo uma rotina de cuidados amplos que incluía desde o uso de sabonetes específicos para a limpeza do rosto, passando por uma alimentação saudável, até um olhar mais atento para suas emoções. “Eu segui essa rotina, encarando todo processo de forma bem leve e sem querer pegar atalhos para resolver o problema, mas foi um caminho de muito julgamento e olhares tortos”, pontua.
Apesar das críticas à isotretinoína, dermatologistas defendem que o medicamento, quando há acompanhamento médico, é seguro. Edileia Bagatin, professora associada do Departamento de Dermatologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), lembra que a fórmula está no mercado há 40 anos e admite registros de efeitos colaterais, mas avalia que essas ocorrências são pouco frequentes. Entre as implicações adversas, o mais comum é o ressecamento dos olhos e da mucosa da boca. Além disso, a substância não deve ser usada por mulheres que não utilizam métodos contraceptivos, pois causa danos ao feto.
Tratamento. Normalmente, nos casos mais leves, “o cuidado diário da limpeza e cremes à base de retinóide e peróxido de benzoíla vão melhorar a inflamação da pele”, aponta a dermatologista Michelle Diniz, professora na Faculdade de Ciências Médicas.
Em situações mais agravadas, quando há muita lesão inflamatória, recomenda-se, geralmente, o tratamento sistêmico oral. “A primeira linha são os antibióticos com efeito anti-inflamatório, que vão ser usados por cerca de três meses. Se a resposta não for efetiva, a tendência é que o profissional sugira o uso da isotretinoína – e, neste caso, é importante monitorar o funcionamento do fígado”, avalia. No caso da acne da mulher adulta, o uso de hormônios antiandrógenos, presentes em alguns anticoncepcionais, pode ser uma boa alternativa.
Movimento defende o respeito à toda diversidade de pele
“O meu contato com o movimento foi um pouco inesperado”, relata a mineira Mônica Rodrigues dos Santos, 26, que sofre com acne a mais de uma década, mas que sempre havia mantido uma boa relação com a própria pele. Tudo mudou nos últimos três anos, quando, entre outros problemas de saúde, a inflamação da epiderme ganhou contornos mais severos.
Moradora de Uberlândia, na região do Triângulo Mineiro, a hoje estudante do curso de nutrição percebia como, de forma silenciosa, as lesões cutâneas vinham implicando em grande desgaste emocional para ela. “E, para piorar, eu não conhecia ninguém que estivesse passando pelo mesmo que eu. Eu estava sozinha”, diz. No Instagram, buscando por hashtags que levassem a possíveis tratamentos para o problema, encontrou rostos parecidos com o dela. “Fiquei encantada com o universo de peles reais, (em encontrar) um lugar em que eu pude me sentir acolhida e finalmente ter minhas dores compreendidas. Isso me deu um ânimo enorme pra continuar buscando uma pele mais saudável”, aponta.
Para Mônica, o movimento skin positivity significa respeitar todas as peles. “No caso da pele acneica é, em primeiro lugar, sobre saber se respeitar e se amar durante o processo de cura, que na maioria das vezes é demorado e de difícil tratamento. É se permitir viver e não passar uma vida se escondendo”, examina, acrescentando que a iniciativa não prega a abdicação do autocuidado. A diferença é que, “enquanto tratamos, vivemos sem vergonha da nossa pele. Simples assim!”, reforça.
Uma forma de conscientizar a população. Além disso, ela defende que, ao levantar a bandeira da “pele livre”, ocorre um espontâneo processo de conscientização de mais pessoas sobre os diversos problemas cutâneos. “Falando especificamente sobre a acne, temos que lembrar que essa é uma condição extremamente complexa e de difícil solução, que causa dor física e emocional. E, portanto, comentários ou opiniões não solicitadas nunca serão bem-vindos”, alerta.
Maquiagem: um recurso artístico. Por fim, ao contrário do que o senso comum pode levar a crer, o movimento tem uma grande relação com a maquiagem. “Não se trata da proibição de usar maquiagem, mas sim da utilização de forma saudável, o que em hipótese alguma é mensurada pela quantidade utilizada. Essa relação é muito mais profunda e subjetiva, e apenas o indivíduo é capaz de descrever as delimitações da sua própria relação”, adiciona Mônica, acrescentando que a maquiagem é uma forma de expressão, e que pode ser um recurso mais artístico do que corretivo.