No lisérgico “As Aventuras de Alice no País das Maravilhas”, uma sonolenta menina é instigada pela visão de um curioso coelho branco, que corre ligeiro enquanto consulta as horas. Ela o persegue e, ao adentrar um buraco, alcança outra dimensão do universo, passando a vivenciar situações que, por mais absurdas e fantasiosas, são sentidas à flor da pele, como se fossem reais.
A obra de Lewis Carroll, embora não seja a única, está entre as mais célebres a explorar a potência dessas experiências que, de uma certa maneira, prescindem da realidade concreta. Tanto que esse clássico da literatura infantil, publicado pela primeira vez em 1865, já ganhou algumas adaptações para o cinema e inspirou uma série de produções culturais.
Agora, uma legião de pessoas, sobretudo adolescentes ativos na plataforma de vídeo TikTok, parece interessada em conhecer e ter experiências nesses universos alternativos, alcançados por meio de estados alterados de consciência. Preferencialmente, esses jovens demonstram o desejo de ir para Hogwarts, a Escola de Magia e Bruxaria da franquia “Harry Potter”, que se tornou franco favorito destino desses “turistas”.
E, para chegar lá, nem sequer é preciso pegar o trem que, na obra de J. K. Rowling, sai da Plataforma 9 e ¾ na Estação de Kings Cross em Londres e tem como destino a aldeia de Hogsmeade, que é a estação da famosa escola mística. Segundo os entusiastas da prática, que virou tendência nas redes sociais, os interessados em embarcar nessa viagem podem fazer isso de qualquer lugar. Basta que um simples passo a passo seja seguido.
No Brasil, a técnica vem sendo chamada de “Realidade Desejada” abreviada como “DR”. Nos Estados Unidos, o método foi batizado como “Reality Shifting”. Só no TikTok, as visualizações de conteúdos associados à temática chegam a cerca de impressionantes 2 bilhões de acessos. Em boa parte, esse material traz relatos de quem diz ter “chegado lá” e dicas de como realizar a proeza.
Mas, convenhamos, o interesse por experimentos afins não é propriamente novo. Assim como as realidades alternativas já inspiraram um sem-número de obras, é verdade também que outras gerações já investigaram essas possibilidades sensoriais. Religiosos, movimentos da contracultura e alguns povos tradicionais já recorreram à meditação, ao transe ou mesmo ao uso de substâncias psicodélicas para alcançar um estado alterado de consciência que tornasse possíveis as popularmente chamadas “experiências extracorpóreas”.
A diferença é que, dessa vez, a dinâmica não aparece atrelada à espiritualidade, ao autoconhecimento ou à investigações científicas. A “DR” se diferencia por ser uma prática que, até o momento, é apresentada como esvaziada de um objetivo outro que não seja apenas o bem-estar momentâneo.
Fuga e individualismo
“Curiosamente, essa prática parte de um script, de um padrão, de um modo de fazer, como se a experiência fosse ser igual para todo mundo e algo simples de alcançar. Mas a gente sabe que não é bem assim”, comenta a psicanalista Cínthia Demaria, que, a convite da reportagem de O TEMPO, analisou o fenômeno. “Fiquei bem impressionada com a proposta, vi alguns vídeos de adolescentes ensinando como alcançar a ‘Realidade Desejada’, vi relatos de que para alguns é mais fácil e para outros nem tanto. O que só reforça o fato de que a realidade, ainda que a ‘desejada’, é singular para cada um”, diz.
“Essa ‘trend’ (tendência, em inglês) me parece um eco de uma lógica que quer nos fazer acreditar que, por meio da oferta de produtos, podemos suprir sem lidar com a falta que nos aflige. Por isso, é algo que parece tão atraente”, opina, alertando que, por outro lado, “essa mesma mentalidade está por trás de compulsões por compras, de toxicomanias e da compulsão por pulsão de morte, caso das anorexias, bulimias e mesmo da depressão”.
Na avaliação de Cínthia, a proposta da “DR” está atrelada a uma ideia potencialmente nociva de fuga da realidade. “Funciona como um convite para, se esta realidade não está satisfatória, ir para uma outra”, resume.
A estudiosa ainda salienta que a técnica é pautada pelo individualismo. “Jacques Lacan (psicanalista francês) faz uma distinção, em um de seus seminários sobre práticas discursivas, entre os discursos que fazem laço social e o discurso capitalista, que prescinde de constituir laço com o outro. É algo que percebo nesse movimento, que traz essa ilusão da completude, mas não com um parceiro, e sim com um gadget, que pode ser conectado e desconectado e está ao alcance das mãos. É um discurso que diz sobre como você pode prescindir do outro”, avalia.
A realidade não basta
“A arte existe porque a realidade não basta”, cravou o escritor Ferreira Gullar naquela que, não por acaso, se tornou a sua mais conhecida – e repetida – declaração. A frase, afinal, sintetiza um sentimento e um desejo com um quê de universais – como podemos perceber não só no fazer artístico, como disse o poeta, mas também no professar de religiões milenares e na mais nova tendência do TikTok.
“Essa busca de um universo alternativo, não necessariamente nos moldes da ‘DR’, é comum. Se a gente pensar bem, pegando como exemplo os meninos que querem ir para o mundo de Harry Potter, podemos dizer que, teoricamente, eles já foram um pouco quando assistiram ao filme ou leram os livros da saga”, opina Cínthia Demaria. “Isso porque a gente já faz esse contrato com essa indústria do entretenimento – de que vamos acreditar naquela realidade que estamos vendo na tela, por mais que saiba que é uma realidade criada. É também algo que fazemos no caso de jogos, como o Second Life (um ambiente virtual que simula a vida real e social do ser humano através da interação entre avatares)”, observa.
Para a psicanalista, esse movimento de imersão nos universos propostos por obras de arte ou por produtos de entretenimento se diferencia da “DR” à medida que essa última está mais flagrantemente associada a um escape. “A grande questão é que, nesse caso, há uma oferta da possibilidade de fugir da realidade concreta e ser feliz pelo tempo que você quiser”, sinaliza.
Reflexo. Cínthia Demaria pontua que a “DR” parece muito atrelada a certas dinâmicas sociais contemporâneas. Principalmente, soa como reflexo da experiência da virtualidade. Nas redes sociais, argumenta ela, sabe-se que a vida é apresentada de forma editada, simulando algo como uma “realidade desejada”. Além disso, a experiência nesses ambientes acaba reproduzindo uma dimensão paralela estruturada segundo nossas vontades.
“Nós já estamos separados em bolhas e já vivemos em realidades em que é mais fácil prescindir da presença do outro do que lidar com uma opinião que frustra nossa realidade. Mas, da mesma maneira que a ‘DR’ é uma ilusão, essas dinâmicas também são. As pessoas que escolhem não discutir política ou as que decidiram não acreditar no vírus, por exemplo, podem acreditar que estarão mais seguras e mais felizes por estarem alheias aos problemas da sociedade. Mas elas também serão impactadas por esses problemas”, conclui.
Efeito. Ao jornal Washington Post, dos Estados Unidos, a psicoterapeuta holística Laura Rosser Kreiselmaier situou que o fenômeno não está dissociado da pandemia da Covid-19. Classificando a “DR” como uma forma de auto-hipnose.
Para ela, as gerações mais jovens já vinham lidando com uma crise existencial, marcada pela incerteza se nosso planeta será capaz de sustentar a vida humana no futuro. Então, o coronavírus surge como um grande problema adicional ao interromper os ritos de passagem da infância para a juventude e da juventude para a vida adulta. Sem contar que a emergência sanitária ainda fez ruir muito do que entendíamos como normal. “Portanto, não é surpreendente que as pessoas estejam tentando descobrir como enfrentar essa realidade, talvez induzindo a si mesmas a uma ‘realidade’ que seja mais agradável”, pondera.