A cena é simples. Mia Farrow, desolada, entra mais uma vez no cinema, hábito que adquiriu ao longo dos anos. Aos poucos, algo começa a apaziguar-se dentro dela, e, embora o mundo permaneça terrível do lado de fora, Cecilia, sua personagem, encontra consolo, e até esboça um sorriso de alívio.
A sequência está em “A Rosa Púrpura do Cairo”, de 1986, um dos filmes que valeu o Globo de Ouro de melhor roteiro a Woody Allen, que também venceu o Oscar por quatro vezes, além de incontáveis outros prêmios, incluindo Bafta, César e Cannes. Toda essa aclamação não impediu o cineasta de elaborar uma espirituosa e afiada reflexão no livro “Sem Plumas”, de 1975.
“Hoje vi um pôr do sol cheio de vermelhos e amarelos, e pensei ‘Puxa, como sou insignificante!’. O interessante é que ontem pensei a mesma coisa, embora estivesse chovendo”, escreveu Allen, com seu humor característico. Para além do chiste, a reflexão é válida, como aponta a psicóloga Camila Fardin, defensora da “insignificância” como um valor a ser apreendido pela contemporaneidade.
“Aceitar a própria insignificância é fundamental para a gente viver melhor. Muitas vezes, estamos preocupados com o que o outro vai pensar, e, com isso, deixamos de fazer coisas que gostaríamos. Quanto mais penso no outro, menos estou pensando em mim…”, resume.
Na opinião da entrevistada, o que atrapalha o doce desapego da insignificância é, justamente, essa relação que estabelece um peso pretensamente atribuído às nossas atitudes pelo outro, impedindo “a insustentável leveza do ser”, como poetizou o romancista checo Milan Kundera (1929-2023).
A origem dessa tensão estaria no próprio processo de aprendizado e formação do ser humano. “É muito difícil atingir a compreensão do nosso grau de insignificância porque, desde criança, somos ensinados e criados a partir do olhar do outro. Antes de nascer já havia um outro que dizia qual era meu nome, meu quarto e as roupas que eu deveria usar”, explica Camila.
Criando a própria identidade
Como a psicóloga aponta, “existem um pai e uma mãe que depositam expectativas sobre aquele bebê”. “A nossa identidade é formada a partir do olhar do outro, isso é um fato”. No entanto, Camila esclarece que há um segundo momento, em que essa identidade sofrerá mutações a partir de uma perspectiva mais independente, proativa e autoral, inerente ao desenvolvimento da pessoa.
“Mais tarde eu preciso, em alguma medida, me desvencilhar do olhar do outro, porque, por mais que minha identidade tenha sido formada a partir deste olhar, eu adquiro uma identidade própria, e passo a escolher como me vestir, portar, comunicar, e etc”, afirma.
O desafio é, exatamente, transformar a teoria em prática, ou a mera aparência numa postura essencial, colocando o “como eu quero em detrimento do que o outro vai pensar de mim”. Chegar a esse “lugar libertador” teria, como pavimento, a constatação da insignificância defendida pela especialista, o que permitiria atitudes menos preocupadas, substituindo o medo do julgamento pelo sabor da experiência cotidiana.
“Podemos usufruir da liberdade de pensar e agir de acordo com nossas convicções, respeitando o limite do outro e lembrando que vivemos em uma sociedade civilizada. Mas não precisamos nos sentir obrigados a cumprir as expectativas alheias”, pondera.
Embora considere possível uma pessoa constatar, sozinha, a própria insignificância diante de possíveis cobranças externas, e vivenciar uma vida mais plena e livre, Camila acredita que a psicanálise ainda oferece instrumentos que ajudarão a pessoa a percorrer esse caminho de maneira segura, até como contraponto à influência negativa das redes sociais, que, segundo a psicóloga, “nesse sentido são muito cruéis”.
A lógica dominante ali seria a da “aprovação do outro”. Nesse jogo de espelhamentos, todos parecem cobiçar “o olhar do outro sem, necessariamente, querer olhar para si”. Porém, quando a pessoa assimila a noção de insignificância, essa cortina desaparece. “O que faço não vai atingir o outro, assim como o que o outro faz não é para me atingir. Ele está vivendo a vida dele, e eu estou vivendo a minha. Quando a gente pensa assim, fica mais livre para viver de forma leve”, sustenta Camila.
Aceitar a própria insignificância não é se desvalorizar
De acordo com a psicóloga Camila Fardin, a constatação da própria insignificância é, antes de tudo, uma atitude filosófica que precisa ser equilibrada, sem descambar para a autodepreciação e desvalorização.
Ela resume a prosa numa frase aparentemente paradoxal, mas que guarda o sentido oculto e, ao mesmo tempo, profundo do desprendimento. “Aceitar a nossa insignificância é se valorizar, ao mesmo tempo que não posso desvalorizar a existência do outro, no sentido estrito de que vivemos numa sociedade civilizada, e não posso ‘passar por cima’ dos direitos e desejos de ninguém”.
A receita estaria no significado de uma palavrinha mágica: “conviver”, ou seja, “viver com o outro”, sem impor para si aquilo que o outro pensa sobre a vida. Camila recorre a uma atitude que se tornou tão costumeira e natural que deixamos de considerá-la absurda.
“As pessoas andam na rua prestando atenção ao olhar do outro, imaginando o que o outro está pensando, conjecturando um possível julgamento. A pergunta que devemos fazer é: ‘Qual a significância da opinião de uma outra pessoa qualquer que está andando na rua para a minha individualidade?’”, questiona.
Sem delongas, a própria psicóloga responde: “Nenhuma”. “Assim como a minha opinião tem pouca significância para aquela pessoa. Dessa forma, consigo viver com mais liberdade do que nas amarras das expectativas e julgamentos dos outros, que são sempre muitíssimos fantasiosos, no sentido de que ninguém disse nada, mas eu interpreto o olhar do outro e isso vai podando a minha liberdade e individualidade”, conclui.