"Quem tem fome tem pressa, não pode esperar. A fome é perversa, não dá pra negar". O trecho da música, gravada por dezenas de artistas para a campanha de combate à fome da "Ação da Cidadania", ilustra perfeitamente a situação em que se encontravam as duas crianças, de 6 e 9 anos, que foram resgatadas na última terça-feira (21) trancadas em um apartamento no bairro Lagoinha, na região Noroeste de Belo Horizonte. Os dois só foram encontrados após o menino mais velho sentir o cheiro do churrasco, que era feito por uma vizinha, e pedir um pouco de comida para ele e o irmão, que, desnutrido, mal conseguia falar.
Os detalhes da situação degradante em que se encontravam as crianças foram repassados a O TEMPO pela vendedora Poliana Pereira dos Santos, de 37 anos, que foi a vizinha responsável por acionar a Polícia Militar (PM) ao local. Ela conta que tinha um pano amarrado no buraco da porta do imóvel e que foi por lá que o garotinho pediu socorro.
"Meu sobrinho estava andando de bicicleta aqui e, pelo buraquinho, ele viu e pediu um pouco de comida. Meu sobrinho, que tem mais ou menos a idade dele, veio até mim e contou. Fui até a porta e vi os dois, um deles disse que tava com fome e pediu churrasco para ele e o irmão. Pedi para ele abrir a porta, e ele falou que podia ser por ali mesmo. Falei que a vasilha não cabia no buraco e foi ele que sugeriu que eu colocasse em uma sacolinha e disse 'eu estou com muita fome, me dá churrasco'", detalhou a mulher.
Diante da situação, a vendedora então colocou um pouco de churrasco em uma sacola e passou um pouco de refrigerante em uma garrafa de 600 ml, que era a única que cabia no buraco da porta. "Coloquei o suficiente também para a suposta avó, pois ele disse que ela estaria dormindo. Ele estava treinado para mentir, mas eu passei a vigiar e vi que ninguém entrou ou saiu da casa. Mais a noite ele voltou a me chamar de tia e disse que estava com fome. Mandei seis pães com manteiga e um pouco de suco pelo buraco, e nada dessa tal 'avó' chegar", continua Poliana.
A mulher conta ainda que nunca tinha visto as crianças ali, mas, apenas, as duas irmãs deles, de 1 e 2 anos, que, segundo ela, sempre estavam muito bem cuidadas, gordinhas e penteadas. "Eu nunca vi eles aqui. Chorei demais. Eles me agradeciam quando eu dei comida, são muito educados. Graças a Deus eu resolvi fazer esse churrasco para a família e eles, que estavam com tanta fome, sentiram o cheiro e chamou atenção. Eles devem ter pensado, 'meu sonho era comera alguma coisa'", conta emocionada a vizinha.
Confira o vídeo com toda a entrevista:
A mãe dos meninos, uma mulher de 30 anos, está presa desde o dia 6 de fevereiro, quando ela levou um outro filho, de 4 anos, já desacordado a um hospital de São Joaquim de Bicas, na região metropolitana de BH. A criança acabou morrendo.
A Polícia Civil investiga o caso e, até o momento, a mulher que estaria cuidando e teria abandonado as crianças no local ainda não foi identificada ou presa.
Resgate
Assustados com o quão debilitadas as crianças estavam, a mulher e uma amiga resolveram, então, acionar a polícia. Segundo ela, ao abrir a porta, foi constatada muita sujeira no local. "Encontramos muita sujeira, o cheiro era tão forte quando os policiais abriram a porta que nem eles aguentaram. A gente se emocionou muito quando vimos os dois, com os bracinhos fininhos, um deles sem conseguir nem falar. Aí começamos a chorar. Tinha vasilha de comida com bichos, colchão no chão", contou, emocionada, a vendedora.
Ainda segundo o relato dela, o local era, claramente, um cativeiro. "Essa porta aqui (disse apontando para um outro cômodo do local) tivemos que arrombar para ver se tinham mais crianças aqui. Estava fechada e foi chocante, por que aqui estavam todos os brinquedos, na parte trancada. Eles estavam ali, com o colchão, e os brinquedos lá do outro lado, nem brinquedo a maldita deixava para eles", indgna-se Poliana.
Relembre o caso
No início do mês, a mulher levou o filho de 4 anos ao médico, mas a criança já estava morta. O menino chegou com lesões no olho, inchaço no pé e queimaduras no tornozelo. Os profissionais da saúde tentaram uma manobra de reanimação cardiorrespiratória por trinta minutos, mas a criança não resistiu. A mãe deu várias versões aos policiais.
Conforme informações do boletim de ocorrência, ela afirmou que o menino teria caído, que teria se queimado com uma lagarta e que também teria se queimado com uma bota molhada no tornozelo. Ainda conforme informações da Polícia Militar, os relatos da mulher não condiziam com as lesões encontradas na criança.
Depois disso, as outras duas crianças, de 6 e 9 anos, da mulher presa, foram resgatadas com desnutrição em um apartamento no bairro Lagoinha, nessa terça-feira de Carnaval. Elas ficaram trancadas por três dias sem comida e cuidados. Os meninos foram encaminhados ao hospital Odilon Behrens e, posteriormente, ficarão sob os cuidados do Conselho Tutelar. A Polícia Militar foi chamada após uma vizinha relatar a situação dos pequenos.
A mulher chegou a alimentar as crianças por um buraco na parede. A porta estava trancada com um cadeado e correntes. Um dos meninos contou que havia vindo de São Joaquim de Bicas na semana passada e que a avó teria passado a noite de sábado com ele e o irmão, mas não retornou.