Enquanto o governo mineiro comemora a redução dos índices de criminalidade no Estado, que se tornaram o menor entre as unidades da federação, conforme dados do Ministério da Justiça, uma comissão na Secretaria de Estado de Segurança Pública (Sejusp) investiga possíveis adulterações em dados na região Norte de Minas Gerais. O caso foi revelado pelo coordenador do Centro de Estudos de Segurança Pública da PUC-Minas, Luís Flávio Sapori, que faz parte do grupo de trabalho. A suspeita foi denunciada à pasta no início do ano, segundo o especialista.

“Há uma avaliação de supostas manipulações de dados criminais e ocorrências no Norte de Minas, após denúncia apresentada. E tem uma comissão, da qual eu faço parte, no âmbito da Secretaria (de Estado) de Segurança Pública, que está avaliando essa possível adulteração intencional das ocorrências criminais para que índices fossem reduzidos e metas, atendidas”, contou Sapori. Um dossiê com as suspeitas foi apresentado à pasta, que ainda não concluiu as investigações.

A suspeita é que, para evitar que crimes violentos fossem registrados na região, policiais militares adulteravam ocorrências, a exemplo de uma tentativa de homicídio que foi colocada no boletim como lesão corporal. Há ainda casos de abuso sexual de crianças que teriam sido apontados como uma infração contra a dignidade sexual e família _ e não estupro de vulnerável, que tem penas maiores e também é considerado um tipo criminal violento.

O documento traz também suspeitas de que policiais omitiram informações prestadas por vítimas para evitar que a situação fosse colocada como violenta. As adulterações ainda teriam sido ordenadas por militares que estão no comando da corporação.

Resposta da Sejusp

A Sejusp informou que o caso segue sendo investigado pela comissão para verificar suspeitas sobre 510 registros criminais elaborados na 11ª Região Integrada de Segurança Pública, com sede em Montes Claros.

“Destacamos que o trabalho é muito importante para dar transparência aos dados e ações da Segurança Pública; contudo o quantitativo de ocorrências que estão em análise e que podem ter tido qualquer tipo de divergência interpretativa representa uma ínfima parcela dos Reds ((Registros de Eventos de Defesa Social) elaborados diariamente e que não apresentam qualquer divergência de avaliação”, enfatizou a pasta.

Não há previsão para o término dos trabalhos. Veja, abaixo, a resposta completa da Sejusp.

Pesquisadora questiona critérios dos registros

As polícias costumam adotar uma estratégia de “somar vários crimes para dar uma sensação de melhora que nem sempre ocorre", sem analisar o impacto de cada um, segundo Ludmila Mendonça, pesquisadora do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública (Crisp) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Segundo a especialista, para analisar se realmente há uma melhoria na segurança pública, é necessário ir além das informações fornecidas nos boletins de ocorrência através das chamadas pesquisas de vitimização, que funcionam como uma espécie de censo.

“Isso porque, no registro da polícia, muitas vezes, está sendo medida a confiança da corporação ser capaz de elucidar aquele crime ou de ser capaz de tomar alguma ação e resolver (o caso)", considera. E ela acrescentou: "Em casos de crimes como o estupro, por exemplo, menos de 8% são notificados, um número bem aquém do que de fato acontece na nossa sociedade”.

Sem indicadores importantes

A pesquisadora da UFMG pontuou ainda que, caso fossem medidas outras modalidades de crime, os índices seriam ainda maiores. É o caso do furto, que, segundo dados da Sejusp, foi responsável por mais de 99 mil ocorrências apenas no primeiro semestre do ano, com taxa de 464,91 crimes a cada 100 mil _ número cinco vezes maior que a média mineira nas outras nove modalidades criminais.

“Levantamentos internacionais mostram que o furto é uma das violências de que as pessoas têm mais medo. É o celular, documento, dinheiro que pode ser levado”, frisou Ludmila.

Prejuízo com furto passou de R$ 30 mil 

Em Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, a comerciante Sirlene Ferreira, 52, teve um prejuízo de mais de R$ 30 mil após a loja de roupas, lingerie e produtos de beleza ser furtada durante a madrugada, por um casal, em outubro deste ano.

"Fiquei uma semana sem abrir, muito desorientada, porque não tinha dinheiro para repor a mercadoria. Foi uma decepção muito grande, levaram praticamente tudo", revelou. A comerciante conseguiu comprar novos produtos somente após receber ajuda de familiares e amigos, que fizeram uma vaquinha. "Ainda não está do jeito que era, mas já tem bastante coisa", disse.

O estabelecimento fica no bairro São Luiz, que passa por uma onda de insegurança. Comerciantes vizinhos também foram furtados. "Pedimos mais proteção no bairro. Várias lojas foram furtadas também, inclusive uma três dias depois da minha. Na distribuidora, entraram três homens. Na padaria chegaram a bater nos proprietários. Sempre escutamos que algum lugar teve o problema", pontuou.

Seis tipos de crimes violentos tiveram alta

Apesar da melhoria nos indicadores gerais encaminhados pelo governo federal, dos 13 crimes violentos analisados pela Sejusp, seis apresentaram altas no período. São eles: estupro consumado, estupro de vulnerável consumado, extorsão consumado, extorsão tentado, sequestro e cárcere privado consumado e sequestro e cárcere privado. Para Ludmilla Mendonça, alguns desses aumentos podem ser consequência principalmente da flexibilização ao longo da pandemia. 

“O fato de o estupro ter mais casos nesse ano significa que, talvez, as pessoas estejam saindo mais de casa e denunciando mais esse tipo de crime. No ano passado, várias pesquisas mostraram um decréscimo, o que foi algo preocupante especialmente porque as pessoas estavam tendo menos chance de denunciar seus agressores, já que foram raros os momentos em que não estavam perto dele”, finalizou a pesquisadora da UFMG.

Situação no Norte é pontual

Coordenador do Centro de Estudos de Segurança Pública da PUC-Minas, Luís Flávio Sapori acredita que, apesar da suspeita, essa seja uma situação pontual e que não interfere na contabilização dos crimes violentos registrados no Estado. “Eu não diria que isso esteja acontecendo em todo o Estado, não, já que a queda da violência é real, e os números refletem a realidade de Minas Gerais”, argumentou.

‘Distante de patamares aceitáveis’

O especialista argumentou que, mesmo com a melhora da taxa de criminalidade nos últimos anos em Minas, os índices ainda estão distantes de patamares aceitáveis de violência. “A sociedade brasileira continua, de forma geral, ainda longe de uma meta bastante razoável. Eu diria que tínhamos em Minas Gerais um parâmetro melhor no início da década de 1990, algo que devemos perseguir para voltar a atingir”, afirmou.

No levantamento realizado pelo Ministério da Justiça, foram somadas todas as ocorrências dos nove crimes violentos, e a taxa de crimes foi obtida a partir da população estimada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

“Nos casos de furto e roubo a veículos, são calculados os registros proporcionalmente à frota inscrita no Departamento Nacional de Trânsito (Denatran). Não há atribuição de peso entre os diferentes crimes observados”, informou a Sejusp, sobre os dados.

Veja a nota da Sejusp na íntegra:

A Comissão de Verificação dos Reds, estabelecida pela Sejusp para verificar entradas no Sistema de Registros de Eventos de Defesa Social (Reds) e a redação de 510 registros elaborados na 11ª Região Integrada de Segurança Pública segue trabalhando na leitura e verificação dos registros referentes à Região Norte, em conjunto com as instituições participantes da comissão.

Destacamos que o trabalho é muito importante para dar transparência aos dados e ações da Segurança Pública; contudo o quantitativo de ocorrências que estão em análise e que podem ter tido qualquer tipo de divergência interpretativa representa uma ínfima parcela dos Reds elaborados diariamente e que não apresentam qualquer divergência de avaliação.

Todas as instituições participantes da Comissão estão realizando, uma a uma, a leitura de todos os arquivos propostos. Na próxima etapa, após a leitura e verificação dos dados, a Comissão se reunirá para avaliação dos resultados e conclusão dos trabalhos. Por exigir cautela e uso de método específico, não há ainda previsão de término dos trabalhos. Seguem trabalhando os órgãos da Segurança Pública e especialistas da área, representantes da sociedade civil.

O objetivo da Comissão é ratificar a seriedade da Segurança Pública de Minas Gerais, que conta com auditoria dos seus dados e transparência. Não há outra investigação neste sentido no Estado.