Manifestação

Da pamonha à maconha: marcha pela legalização da planta faz 15 anos em BH

Proibido em 2008, movimento “debuta em meio à discussão da descriminalização do porte de pequenas quantidades de droga pelo STF

Por José Vítor Camilo
Publicado em 25 de agosto de 2023 | 18:00
 
 
No último dia 17 de agosto, ativistas do movimento promoveram um panfletaço no centro de BH para divulgar o evento Foto: Fred Magno/ O Tempo

O intervalo de 15 anos pode parecer pouco tempo historicamente falando, mas, para aqueles que defendem a legalização da maconha, o curto período foi suficiente para assistir a uma grande evolução na pauta. Em 2008, a 1ª Marcha da Maconha de Belo Horizonte era proibida pela Justiça, e, nos anos que seguiram, mesmo com a liberação do ato, os manifestantes não podiam usar a emblemática folha da planta ou gritar palavras de ordem que citassem a droga, levando-os a trocar o nome por “pamonha” ou “mamona”. Já em agosto de 2023, durante os preparativos finais da 15ª marcha, que acontece neste sábado (26 de agosto) a partir das 13h, os integrantes do movimento tiveram a oportunidade de ouvir o ministro Alexandre de Moraes, o mesmo que afirmou em 2016 que pretendia “erradicar a maconha” do Brasil, votando a favor da descriminalização do porte de drogas no plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).

Em BH, o ato passou de cerca de 30 “maconheiros” para se tornar uma das maiores marchas de todo o Brasil, levando mais de 20 mil pessoas a subir a rua da Bahia, cruzando o centro da capital, em defesa da legalização da cannabis sativa, nome científico da planta. Aos gritos de “Ei, polícia, maconha é uma delícia”, o movimento passa em frente à 4ª Companhia da Polícia Militar (PM), tudo isso carregando um “baseado” alegórico gigante que, em 2023, promete ser o maior desde o início do movimento em BH.

Logo em seu primeiro ano, apesar de trazer a palavra marcha no nome, o protesto foi, na verdade, estático. Parados na praça da Estação, o grupo se manifestou contra a "censura" judicial ao ato. Apesar de não ter participado do "parto" da Marcha, o publicitário Pedro Maia, de 40 anos, acompanha o movimento desde 2009 e faz parte atualmente da organização da Marcha da Maconha.

“Eu era muito novo, mas já tinha um entendimento de que não é uma droga, mas uma planta. Não precisa fazer processo nenhum, nada químico para consumir. É só colher e usar, uma coisa que a natureza entregou”, defende. O manifestante lembra que, o fato de ser uma planta, não impede que ela cause problemas, por exemplo, para portadores de algumas doenças psiquiátricas. “Mas têm muitas drogas legalizadas, como o álcool mesmo, que também são problemáticas neste quesito. A legalização só ajudaria a controlar e evitar que adolescentes, por exemplo, tivessem acesso à erva”, pondera.

A reportagem de O TEMPO procurou o MPMG para comentar sobre o pedido pela proibição da marcha, em 2008, e para saber se, passados 15 anos, o posicionamento do órgão continua o mesmo. Até a publicação da reportagem, a força judicial ainda não havia se posicionado.

Quem é que joga fumaça pro alto?

Muita coisa mudou nestes 15 anos, mas uma delas continua sendo exatamente igual: a orientação para que os participantes não portem ou usem drogas ou maconha durante o protesto. Apesar disso, à medida que o movimento foi crescendo, a “fumaça” passou a subir com mais frequência no protesto, assim como em qualquer grande evento nas ruas da cidade em que há aglomeração de pessoas.

“Quem faz isso, está assumindo o risco, mas a gente desestimula. Mas no início era diferente. Até o STF decidir que era um direito nosso, de nos manifestar, a polícia tinha uma presença ostensiva nas marchas, tanto que a gente não podia nem falar maconha, se não ia preso. Tinha um ônibus da PM acompanhando o protesto”, lembra Maia.

Participação feminina

Foi em 2017 que a poeta, jornalista, mãe e ativista da cannabis Ingryd Rodrigues, mais conhecida como Dyh, começou a participar da Marcha da Maconha de BH. Naquele ano, ela era apenas uma MC que ficava em cima do carro de som. “Ela foi só crescendo, tanto em quantidade de pessoas como em liberdade da forma como nos expressamos. Hoje a marcha é muito mais organizada, com cara de movimento social mesmo”, pontuou.

Porém, segundo ela, até hoje o movimento segue sendo um ambiente bem masculino, apesar de já contar com um número maior de mulheres. “Acabava que, por ter muitos homens, as meninas ficavam meio sem graça de dar opiniões, mudar alguma coisa. Mas o movimento vai se educando nesse sentido também, pois passaram muitas mulheres fortes, que se impunham ali. Eu mesmo fiz questão de brigar para ser ouvida, para colocar minhas opiniões sobre as coisas e, hoje em dia, eu me sinto muito respeitada lá dentro”, completa.

A ativista Dyh aproveita para convocar as mulheres a se mostrarem presentes no ato. “Convidamos qualquer pessoa que tenha responsabilidade social, que entendem que o contexto que nós vivemos é muito injusto, hipócrita e cruel com quem realmente está na linha de frente do problema, que são os jovens negros da periferia. Está cada vez maior também o número de mulheres encarceradas, então é importante que nós tenhamos noção do quanto precisamos lutar para que isso mude”, apela Dyh.

Organização é essencial

Apesar de contar com a participação espontânea dos milhares de ativistas no dia marcado para a marcha, claramente não é fácil manter um movimento social dessa proporção por mais de uma década. Para isso, é necessária muita organização. O ativista Pedro Maia detalha que, até o dia da marcha em si, são necessários várias reuniões. 

“É tudo decidido de forma coletiva, horizontal. Temos sempre um tema específico, por exemplo, e neste ano foi definido que será ‘Vamos plantar para reparar vidas’, que é a ideia do cultivo da marconha para reparar as pessoas lesadas pela guerra ao tráfico, as mães que perdem os filhos, os jovens negros presos com menos de 25 gramas. Temos também os grupos de trabalho, dividimos todas as atividades necessárias entre os voluntários. Temos o grupo de trabalho das alegorias, por exemplo, que têm um trabalho enorme para fazer o baseado gigante que queimamos todos os anos. Mas temos também as reuniões com o poder público, prefeitura, polícia, bombeiros, para organizar tudo para o dia do ato”, detalha o publicitário.

Neste ano, para além do cigarro gigante que será queimado, também haverá na alegoria a ‘Tartaronha”, uma tartaruga fumando um cigarro de maconha que visa representar a lentidão para que a erva seja legalizada no Brasil. Após o ministro Cristiano Zanin dar o primeiro voto contrário à descriminalização no julgamento do STF, ele, certamente, será alvo de críticas durante o ato neste sábado.

"Grande decepção! Era um voto que a gente contava como certo. Por ser indicação do Lula pensarmos que a tendência era que ele seguisse a linha progressista. Ele fez um voto covarde, raso. Agora com o André Mendonça pedindo vista, contamos com o voto da Carmen Lúcia para conseguir esse avanço na pauta", comentou a ativista Ingryd Rodrigues.

O ato também contará com um homenagem a Guilherme Campos, integrante bastante ativo do movimento que morreu em abril deste ano. “Foi uma fatalidade horrível, ele estava muito à frente da marcha nos últimos”, disse, emocionado, Maia.

No princípio, tudo era feito apenas com doações dos próprios integrantes do movimento, com vaquinhas e venda de camisas da Marcha da Maconha. Atualmente, eles também contam com alguns apoiadores, de lojas que vendem produtos ligados à planta. “Marcas de seda, de piteira. São parceiros que apoiam a causa e fazemos essa troca. A gente reconhece a marca como uma apoiadora do movimento. Não queremos patrocínio master, pois patrocinadores querem opinar no que defendemos, e não é algo que gostaríamos”, finaliza o ativista. 

Assunto divide especialistas

Procurados pela reportagem de O TEMPO, dois especialistas em segurança pública discordaram sobre os benefícios da descriminalização da maconha para o país. Nas palavras de Arnaldo Conde Filho, consultor em segurança pública e professor do Curso de Formação de Oficiais da Polícia Militar de Minas Gerais por 19 anos, não há qualquer sentido nos argumentos usados para defender a legalização da maconha e outras drogas.

"Todas as pesquisas científicas, através do tempo, comprovam que a maconha tem consequência nociva para o corpo. Essa discussão foi completamente politizada e perdeu o sentido. O STF quer estipular um limite de peso, então agora os policiais vão ter que andar com balança de precisão?", contesta.

Ainda segundo ele, a discussão é "perigosíssima". "Temos que pensar nas gerações que estão vindo. Temos que pensar nessa meninada, que está virando adolescente e têm acesso a esse tipo de coisa. Eles vão achar que isso é a coisa mais natural do mundo, quando não é. A experiência na área de segurança já mostrou que a maconha é a porta de entrada para as outras drogas", finalizou Conde Filho.

Por outro lado, o advogado, ex-policial e especialista em estudos de criminalidade e segurança pública da UFMG, Júlio Maurício Madureira, discorda completamente dos argumentos usados pelo especialista.

"Em qualquer ângulo de análise, a regulamentação da maconha no Brasil não encontra uma análise negativa, pelo menos no aspecto criminal, jurídico, científico, político, medicinal e carcerário. Sob estes pontos de vista, tudo conduz para um efeito positivo na sociedade", defende.

Madureira afirma ainda que os especialistas devem se reservar à abrangência de seus estudos. "A análise sobe o aspecto da medicina, da química, da saúde pública, deve se reservar aos profissionais desta área. Mas, hoje, já sabemos que esse argumento chave, de que a maconha é a porta de entrada para outras drogas, já está com o prazo de validade vencido. Ele não encontra amparo nem mesmo em pesquisas rápidas na internet", finalizou o advogado e ex-policial.

Integrante da Frente Estadual pelo Desencarceramento (Desencarcera-MG), Luan Cândido defende que a regulamentação da maconha pode reparar vidas que, hoje, são criminalizadas pelo uso e comércio da cannabis. "Quem atua hoje desde o plantio até o transporte, logística e vendas, todo esse pessoal que poderia se associar a uma atividade legal através das associações cannábicas", diz.

Ele também defende que as pessoas possam plantar a erva em suas casas. "Quero que as pessoas tenham a liberdade e o conhecimento de ferir essa planta, assim como outras que são terapêuticas e que já são usadas na fitoterapia. A legalização e a regulamentação da maconha pode trazer uma Justiça reparativa às pessoas que, hoje, são criminalizadas por essas substâncias", argumenta Cândido.

 

Arte de O TEMPO com fotos de: Rodrigo Clemente - 09/05/2009 // Luiz H. Blanco/News Free/Folhapress // Charles Silva Duarte - 12/05/2012 // Lincon Zarbietti - 30.05.2015 // Maxwell Vilela - 2022 // Fred Magno - 2023