Um promotor de justiça foi condenado, de forma unânime, por matar dopada e asfixiada a esposa. A justiça se valeu da  Lei do Feminicídio (nº 13.104/2015) para considerar culpado e gerar uma pena de 22 anos para André de Pinho pelo assassinato da ex-esposa dele, Lorenza de Pinho. Para um país que extinguiu o assassinato de uma mulher em defesa da “honra” somente em 2021, especialistas analisam a condenação do promotor como um triunfo contra a impunidade e histórico.

“Sem dúvida é histórico. Principalmente por provar que violência de gênero não é aceita e não, o agressor não pode fazer o que quiser com uma mulher”, afirma a desembargadora Kárin Emmerich, presidente da 9ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), especializada em violência doméstica. 

De acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), desde 2016, foi registrado ao menos um crime de feminicídio por dia. 2768 mil mulheres foram vítimas, sendo que 35% delas foram mortas, isto é, mais de mil vidas perdidas. Até fevereiro deste ano, segundo a última atualização da Sejusp, já são 25 assassinadas de 48 vítimas até então. No julgamento do promotor, nesta quarta (29), faixas do movimento das mulheres foram afixadas em frente ao TJMG. "Por todas as Lorenzas. Não a impunidade", dizia uma delas. 

Os números, mesmo que altos, ainda não representam a totalidade dos casos. “Às vezes o feminicídio pode estar encoberto por um acidente doméstico, um autoextermínio. É comum o agressor manipular a cena do crime para se retirar do alvo. E é por isso que as delegacias precisam estar qualificadas para ter esse olhar clínico do que pode ser violência de gênero”, explica a delegada Ingrid Estevam Miranda, do Núcleo Especializado de Investigação de Feminicídios. 

A tentativa de culpabilizar a vítima foi a estratégia de defesa do promotor André de Pinho. Ele alegou que sua ex-esposa, Lorenza de Pinho, teria se autointoxicado com medicamentos e álcool e chegou a acionar o socorro com essa justificativa. “O caso de Lorenza teve repercussão suficiente para servir de exemplo. Antes, violências como essas ficavam entre quatro paredes, eram normalizadas. Agora, existe uma lei que está sendo aplicada e mostra que o agressor deve ser e é punido”, reforça a desembargadora. 

Para ela, a condenação do promotor pode impulsionar novas denúncias, uma vez que se acredita na efetividade da lei. "Quanto mais notificações, mais políticas públicas passam a ser pensadas para proteger as mulheres. É o retorno positivo de uma lei bem cumprida”, continua. “Qualquer pessoa está sujeita a ser punida uma vez que teve o crime qualificado como feminicídio, dentro do contexto de violência de gênero. Seja promotor, seja policial, seja professor”, diz. 

Emmerich chama a atenção também para a chamada "espiral da violência”, na qual uma sequência de agressões podem anunciar o risco de feminicídio. “O feminicídio é a ponta do iceberg. São violências de silenciamento, de repressão, de agressão, que vão piorando com o tempo. A morte de Lorenza com certeza não foi do dia para a noite”, diz. De fato, a violência doméstica foi apresentada no processo contra o promotor André de Pinho. 

É por isso que Evangelina Castilho Duarte, superintendente da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica (Comsiv), do TJMG, acredita que um arsenal de políticas da mulher apoiam a Lei do Feminicídio. A começar pela extinção da chamada “legítima defesa da honra”. “Primeiro, a retirada da justificativa de honra foi crucial, isso não existe. Se mata por ódio, em nada é culpa da mulher. Depois, a importância de outras leis. Principalmente a Lei Maria da Penha, que caminha junto com a do feminicídio”, afirma. 

Lei do Feminicídio 

O promotor André de Pinho foi condenado a pagar pena de 22 anos de reclusão em regime fechado por feminicídio triplamente qualificado. A condenação está dentro do que diz a Lei nº 13.104/2015: de 12 a 30 anos de prisão. Sem contar com causos de aumento de pena, como homicídio em ambiente com crianças. De acordo com a delegada Ingrid Estevam Miranda, a Lei do Feminicídio entendeu o crime como homicídio qualificado, isto é, diz de uma morte violência em razão do gênero. “Simplesmente por ser mulher”, explica. 

Para ser considerado feminicídio, é indispensável o contexto de violência de gênero, seja o crime cometido por conhecidos da vítima ou não. “Os casos mais comuns são de feminicídio íntimo. A vítima é morta pelo companheiro, pelo ex-namorado, que têm a sensação de posse sobre ela. O agressor menospreza aquela vida. Por se tratar de uma mulher, acredita que pode matá-la”, explica, reforçando que pode se tratar também de uma agressora, em relacionamentos homoafetivos. “Mas há também o crime sem conexão afetiva. O agressor transfere o ódio para a vítima. Acontecem casos desses após estupros ou de exterminío de profissionais do sexo, por exemplo”, continua a Miranda. 

Nesses casos, a Polícia Civil precisa trabalhar a partir da ótica da violência de gênero. É por isso que são criadas delegacias especializadas. “São realizados cursos de qualificação dos policiais para o que é o feminicídio. A partir da lei, temos que ter o cuidado de contradizer o machismo para entender que nunca cabe a culpabilização da vítima e que ocorrências assim precisam de mais cautela”. 

A condenação do promotor teve como base um laudo da Polícia Civil que concluiu que Lorenza foi intoxicada e estrangulada até a morte. Para a delegada Miranda, o processo seguiu a efetividade da lei. “É obrigação do Estado investigar uma morte violenta suspeita de feminicídio, independente do caso, do autor ou qualquer outra coisa. E assim foi feito”, afirma. 

“A violência não começa pelo fim”

Para a professora e integrante da Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, Tetê Avelar, apesar da condenação do promotor ser um avanço, é preciso reforço no trabalho de prevenção da violência de gênero para evitar mortes como a da Lorenza. “Ao final, a mulher está morta e cabe condenação. Eu acredito que o trabalho é feito antes, de conscientização, de prevenção”, diz. 

“A violência não começa pelo fim, pelo extermínio. Ela está muito antes disso e, às vezes, passa despercebida. Precisamos lembrar que a lei não existe só para punir”, continua Avelar. A professora, engajada na causa, realiza oficinas de conscientização sobre violência de gênero desde o público infantil ao adulto. Para ela, é através de uma formação humanizada que desfechos ruins podem ser evitados. “A condenação vem sim para servir de exemplo, mas sem a conscientização das pessoas, a cadeia fica pequena”, alerta. 

Para a desembargadora Kárin Emmerich, é possível acreditar em dias menos violentos no futuro. “Cada vez mais a legislação está se aprimorando, operadores do direito estão se capacitando, o Ministério Público, as polícias, o poder judiciário. Estamos ficando mais preparados e mais eficazes em julgar essas questões. Afinal, a lei não veio para punir os homens, mas para trazer paz em casa”, diz. Segundo Emmerich, o sucesso de um julgamento que pune o agressor existe porque o “último grito de socorro da vítima é na justiça”. 

Como denunciar violência contra a mulher

  • Denúncias podem ser feitas por meio da Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (disque 180) ou do Disque-Denúncia Unificado (disque 181).
     
  • O registro da ocorrência pode ser feito na delegacia policial mais próxima ou em Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs). Em Belo Horizonte, há uma unidade na Avenida Barbacena, 288, Barro Preto.
     
  • Pela Delegacia Virtual, podem ser registrados casos de ameaça, lesão corporal e vias de fato, além de descumprimento de medida protetiva. Por meio da plataforma digital, as vítimas ainda podem solicitar a medida protetiva enquanto estiverem fazendo o registro.