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Adyr Assumpção celebra 50 anos de carreira com peça, documentário e filme

Ator mineiro está em cartaz com montagem que mistura Shakespeare a tradições africanas e também aparece na tela em encontros com Zé Celso Martinez Corrêa

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 15 de abril de 2024 | 06:00
 
 
Adyr Assumpção celebra 50 anos de carreira com peça que mistura Shakespeare a tradições africanas, documentário sobre Zé Celso e filme inédito Foto: Fred Magno

A sede era tanta que não foi possível evitar o mergulho naquele caldeirão. Desde então, ele se tornou dotado de uma força sobre-humana, que o modificou para sempre. Criada pelos quadrinistas franceses René Goscinny (1926-1977) e Albert Uderzo (1927-2020), a história do gaulês Obelix, melhor amigo de Asterix, e que não é páreo para nenhum romano do império de César, guarda semelhanças com a do ator mineiro Adyr Assumpção, que, aos 65 anos, está comemorando meio século de dedicação ao teatro. Ao beber da “poção mágica”, ele ficou irreversivelmente “contaminado”, confirma. Na ocasião, “não se compravam muitas roupas prontas”. Duas figuras proeminentes do período eram “as costureiras e os alfaiates”, rememora o entrevistado.

Amigo e vizinho de “um alfaiate da moda da época”, cujos irmãos também trabalhavam na alfaiataria, Adyr tinha o hábito de ir até a oficina de costura, localizada no andar de cima do imóvel, no Centro de Belo Horizonte. “Eu frequentava lá tanto para fazer minhas roupas quanto como ponto de encontro da turma”, diz. Até que, certo dia, ele sentiu que havia “caído num túnel do tempo”. “Tinha umas 20 ou 30 pessoas vestidas com trajes de priscas eras”.

Tratava-se de uma prova de figurino para “O Contratador de Diamantes”, peça baseada na obra do escritor Afonso Arinos (1868-1916), que o Teatro Universitário da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) estava ensaiando, como ele veio a saber mais tarde. Mas o impacto da descoberta permaneceu, inoculando uma substância que passaria a ser parte da essência de Adyr.

Transformação

“Me vi em um mundo paralelo, mágico, com as pessoas falando de uma maneira diferente, usando perucas. Me identifiquei totalmente com aquele ambiente”, conta. Além de acompanhar toda a temporada da montagem, com apresentações de terça a domingo e sessões extras nos finais de semana, Adyr decidiu ingressar no renomado Teatro Universitário e, do alto de seus 15 anos, foi conversar com a diretora Haydée Bittencourt (1920-2014).

Havia, no entanto, um obstáculo. Embora possuísse a escolaridade necessária para ingressar na escola de nível médio, ainda não alcançara a idade exigida. “Como eu insisti muito, a Haydée me levou até o reitor, que era o professor (Eduardo) Cisalpino. Ela explicou o caso, e ele me autorizou a fazer a prova. Se passasse, entrava para o TU, mesmo não tendo a idade”, relembra.

Foi o que aconteceu. Naquele mesmo ano de 1974, ele estreou em “Sonhos de Uma Noite de Verão”, de William Shakespeare (1564-1616), dirigido por Haydée, durante o Festival de Inverno de Ouro Preto, então “um dos eventos mais importantes do calendário das artes brasileiras”. “Era um espaço muito disputado de formação, vinham artistas do Brasil inteiro e também de outros países, para uma imersão radical”, comenta Adyr.

Com atores de diferentes origens que fariam carreiras de sucesso posteriormente, como Luiz Carlos Vasconcelos, do Grupo Piolim, da Paraíba, e o mato-grossense Guti Fraga, um dos fundadores da ONG carioca e companhia teatral Nós do Morro, a peça é descrita por Adyr como “experiência maravilhosa”. “Havia essa diversidade de pessoas, lugares, sotaques, e tivemos uma reação efusiva do público”.

Ofício

O cenário de experimentação, encontro e aclamação foi determinante para a escolha de Adyr pelo teatro. De cara, ele foi presenteado com o icônico papel de Puck, um traquinas elfo da floresta. “Todo jovem ator gostaria de fazer esse personagem, porque ele é um ser mágico, mas que tem suas contradições. É essa característica   reveladora que alguns personagens de Shakespeare têm. Eles são capazes de transgredir a norma estabelecida para nos revelar. É muito bonito”, sublinha.

Coincidentemente ou não, Adyr está de volta a Shakespeare com “Leão Rosário”, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil até 22 de abril. Acompanhado por bonecos no palco, ele assina a dramaturgia, inspirada pelo nigeriano Wole Soyinka e pelo brasileiro Abdias do Nascimento (1914-2011), criador do Teatro Experimental do Negro.

“Existem, ao menos, dois pontos de vista que me permitem perceber a montagem de ‘Leão Rosário’, nesse momento, como uma proposição não só bastante oportuna, como assertiva”, salienta Adyr, que destaca a “busca por impregnar a cena nacional de uma memória afro-brasileira”. “Essa é uma questão muito relevante atualmente, em que a gente reafirma uma série de aspectos, enquanto sociedade, da nossa formação. De pensamentos, de proposições relativas à nossa identidade étnica e cultural, de um acerto de contas com a nossa história”.

Ao mesmo tempo, ele ressalta a importância do “retorno ao texto dramático, tradicional, canônico”. “Nesse sentido, Shakespeare é a nossa mais completa tradução”. Na trama, o clássico “Rei Lear”, do bardo inglês, se funde ao universo do artista plástico sergipano Arthur Bispo do Rosário (1911-1989), internado como “louco” na Colônia Juliano Moreira, onde produziu obras de vanguarda.

Mistério

“A partir de uma peça como ‘Rei Lear’ são feitas diversas e belíssimas apropriações culturais. Tem aí um mistério, uma volta à origem. Na realidade, são dois retornos coincidentes: o retorno à nossa memória ancestral, social, histórica, e a memória do ofício, do fazer teatral”, sustenta Adyr. Apesar das dificuldades enfrentadas na contemporaneidade, ele considera “muito gratificante ver o aumento exponencial da produção dramatúrgica de escritores, escritoras, autores de todos os gêneros, diretores e grupos que estão trazendo de forma consciente, deliberada, as questões do povo preto para a cena, ocupando espaços não só do ponto de vista etnográfico, mas, também, das políticas de reparação, num movimento identitário que está presente em toda a sociedade”.

Adyr foi curador, e diretor artístico, do Festival de Arte Negra (FAN). “É urgente, positivo e necessário dar visibilidade a uma série de histórias, pessoas, artistas e fatos que não teriam a possibilidade de serem conhecidos, apreciados e questionados se não fosse uma deliberada política de inclusão e reparação. E aí eu não digo que essa política seja só de Estado. A sociedade tem exercido essa política de forma consciente também”, vaticina, antes de analisar com profundidade as acirradas disputas políticas.

“Vivemos momentos duros, em que a pior face da nossa humanidade se posiciona fortemente. A extrema direita, ou o grupo que está sendo denominado neste arco, nos mostra o lado mais perverso da humanidade, enquanto procuramos resgatar as tradições africanas, dos povos originários, as boas memórias do povo de pele branca, amarela, as boas memórias do mundo. Até nisso, o teatro é interessante, por nos permitir observar os meandros da complexidade humana”, afirma.

Documentário sobre encontro com Zé Celso e filme novo a caminho 

Preso e torturado pela ditadura militar, Zé Celso Martinez Corrêa (1937-2023) foi obrigado a se exilar em Portugal no mesmo ano em que Adyr Assumpção estreava nos palcos. Quando retornou ao país, o dramaturgo, que morreu em um incêndio em seu apartamento no ano passado, criou o primeiro coro do Oficina, uma das marcas da companhia que revolucionou o teatro brasileiro. Esse momento de intensa ebulição criativa e resistência ao reacionarismo é o tema de “O Coro do Te-Ato”, documentário de Stella Oswaldo Cruz Penido, lançado no Festival do Rio, e que se prepara para chegar ao circuito comercial. Como um dos integrantes do coro, Adyr participa do filme.

“É um lançamento que me parece importante não só para a gente entender o trabalho que realizamos no final da década de 1970 e início dos anos 1980, mas como reflexão sobre o próprio fazer teatral no Brasil”, observa Adyr. Com atores e não-atores do Brasil inteiro, Zé Celso reuniu uma trupe que viajou e peregrinou pela nação, até que, “em algum momento, o espetáculo foi proibido pela censura e o elenco não podia mais trabalhar junto”, o que acarretou a separação, levando cada um para seu lado.

“Esse filme conta um pouco como isso marcou não apenas cada um de nós, mas o próprio desenvolvimento do Oficina enquanto grupo de teatro. Algumas peças que serão realizadas depois, já tinham sido, de certa maneira, preparadas ali no ensaio geral”, afiança Adyr, que cita as célebres montagens “As Bacantes”, “Os Sertões” e “Cacilda!”.

“E nós, que fomos buscar outros caminhos, seguimos transitando nessa área comum dos temas dramatúrgicos, com a questão dos encarceramentos, dos limites entre loucura e sanidade, que, à época, nos aproximaram do Bispo do Rosário e da Colônia Juliano Moreira, onde ele morava, que está no filme da Stella e, de repente, se conecta com o ‘Leão Rosário’, que é o que eu estou fazendo agora. Então é cinema e teatro, tudo junto, misturado”, reflete.

Ainda na sétima arte, Adyr tem outra novidade na manga. Ele está no elenco de “O Silêncio das Ostras”, de Marcos Pimentel, que deve estrear em breve, e com quem já havia trabalhado em “Dia de Reis”, filmado no interior de Minas, e inspirado em Shakespeare. “Tudo isso é muito fascinante…”, resume Adyr.

Origens

Com uma centena de peças no currículo e o título de mestre pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a frase soa quase como uma heresia, mas dá conta da minuciosa construção empreendida pelo ator ao longo de meio século: “Eu não tinha muita intimidade com o teatro”, admite.

Filho de Maria Odete Araújo e Adyr Assis D’Assumpção, de quem herdou o nome, com o devido acréscimo do Júnior, o mineiro de Belo Horizonte, nascido em 31 de maio de 1958, passou “a infância e a adolescência dentro de uma sala de cinema”. Concomitantemente, escutava música brasileira no rádio, graças à matriarca, e lia histórias em quadrinhos…

“Do teatro, me lembro de uma coisa ou outra, como ‘Liderato, o Rato Que Era Líder’, uma encenação do Helvécio Ferreira para o texto do André Carvalho e do Gilberto Mansur que o Banco da Lavoura patrocinou fazendo campanha do Lavourinha, que era uma espécie de banco para crianças”, resgata Adyr. A obra virou disco com músicas de Aécio Flávio, mas acabou censurada pela óbvia esculhambação à ditadura dos militares.

Após ingressar no grupo escolar, Adyr mudou-se para o bairro de São Francisco, próximo à Pampulha, e, atualmente, vive em Brumadinho, onde criou a Rádio Guará, canal no YouTube que vocaliza pautas relacionadas, sobretudo, ao meio ambiente e à cultura. “É a ideia de uma rádio ativista e também coletiva”, qualifica Adyr.

Ele garante manter uma “relação muito estreita com Belo Horizonte”. “Essa questão do pensamento metropolitano sempre me atraiu. Talvez seja um mito do século XX que voltou com toda força no século XXI, como parte dessa grande massa de coisas que interagem entre pessoas, interesses, assuntos. Brumadinho nos ajuda a pensar coletivamente, porque grande parte da água que se bebe na região metropolitana nasce na cidade ou passa por ela. Moramos em um espaço de conflito com as mineradoras, sua lógica predatória e os interesses imobiliários, que são muito imediatistas”, analisa Adyr, que, apesar de otimista, não é “muito crente na salvação do planeta”, o que não o impede de atacar com um paradoxo típico de sua personalidade geminiana. “Mas não devemos desistir. Leão Rosário, em um determinado momento da peça, diz: ‘Então ainda há uma esperança, se querem alcançá-la é preciso correr…”. 

Serviço.

O quê. Temporada de estreia do espetáculo “Leão Rosário”, com Adyr Assumpção

Quando. Até 22 de abril, de sexta a segunda, às 19h

Onde. Centro Cultural Banco do Brasil (Praça da Liberdade, 450, Funcionários)

Quanto. De R$15 (meia) a R$30 inteira) na bilheteria do teatro ou pelo site www.ccbb.com.br/bh