Quando começou o interesse pelos relatos de crianças e adultos que narram experiências pretéritas? A investigação científica acerca do fenômeno das alegadas memórias de vidas passadas vem sendo realizada desde os anos 1960, principalmente a partir dos estudos do professor de psiquiatria da Universidade da Virginia, nos Estados Unidos, Ian Stevenson. Ele e seus colaboradores coletaram mais de 2.000 casos relacionados a crianças entre 2 e 9 anos que, de forma espontânea, relataram supostas memórias de vidas passadas, informando nomes de pessoas, lugares e até mesmo a forma como supostamente teriam morrido. Stevenson denominou tais relatos de “casos sugestivos de reencarnação”. Além disso, essas crianças apresentavam habilidades atípicas não apreendidas, como falar e/ou escrever em uma língua estrangeira, marcas de nascença ou até mesmo comportamentos como aversão ou interesse muito grande por algo ou alguém, como, por exemplo, o medo intenso em relação a armas de fogo, quando supostamente a criança teria sido morta a tiros em uma vida anterior.
Qual foi o objetivo desse estudo científico sobre as memórias de vidas passadas? Diante da notória relevância desse campo de estudos, nós, do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde da Universidade Federal de Juiz de Fora (Nupes/UFJF), sob direção do professor e psiquiatra Alexander Moreira-Almeida, estamos desenvolvendo a pesquisa “Levantamento Nacional de Casos Sugestivos de Reencarnação na População Brasileira”, iniciada em março de 2019 e que já recebeu relatos de 425 pessoas que alegam possuir memórias de vidas passadas. Essa pesquisa é parte do meu doutorado e de Sandra Maciel de Carvalho e acaba de ser publicada na revista científica “Explore”.
Nosso foco foi apontar as principais características desse campo de estudo, tais como pesquisadores, regiões onde os casos foram investigados, principais revistas científicas que publicaram estudos sobre o assunto, além das ferramentas metodológicas utilizadas pelos pesquisadores e das características em comum dos casos investigados. Identificamos 78 estudos científicos indexados nas maiores bases de artigos científicos do mundo, como Scopus, Web of Science, PubMed/Medline, e PsychInfo.
Quais os principais resultados dessa varredura? Nossa busca pelas bases de dados incluiu estudos sobre memórias de vidas passadas oriundos de qualquer região do mundo e que foram publicados em revistas científicas qualificadas. Verificamos que os relatos de alegadas memórias de vidas passadas foram investigados principalmente nos continentes Ásia (58 estudos), América do Norte (10), Europa (2) e África (1). Outros sete estudos foram realizados com grupos de participantes de diferentes culturas, ou seja, estudos multiterritoriais, e nestes também foram investigados casos da América do Sul e América Central.
A pesquisa revelou que 45% das publicações sobre o tema aconteceram entre 1990 e 2010 e que a Ásia foi o local onde aconteceram mais investigações, sendo que 84% dos casos foram relatados por crianças. A grande maioria dos casos sobre crianças que alegaram supostas memórias de vidas passadas foi testemunhada, em primeira mão, por pessoas muito próximas a elas, tais como pais e mães, vizinhos, amigos e, em alguns casos, por profissionais da área escolar. Tais casos apresentam semelhanças transculturais, tais como: as alegações geralmente se iniciam espontaneamente entre 2 e 3 anos de idade, e suas manifestações gradualmente vão se reduzindo até a completa interrupção por volta dos 7 a 9 anos. Frequentemente, as crianças descreveram informações supostamente relacionadas a personalidades já falecidas, ou seja, nomes de familiares ou pessoas próximas, localidades onde residiam, profissão e, em alguns casos, o próprio nome e até mesmo o modo como vieram a morrer, sendo que mortes violentas (acidentes, assassinatos etc.) muitas vezes foram descritas pelas crianças. Em muitos casos, os pesquisadores verificaram significativas associações entre marcas de nascença e feridas possivelmente relacionadas ao modo pelo qual a personalidade anterior morreu. Habilidades não aprendidas também foram verificadas em alguns casos, bem como forte aversão ou interesse por algo ou alguém (fobias/filias) que teria relação com fatos marcantes da vida passada (por exemplo, fobia de piscina/mar em quem relata ter morrido afogado).
Os números revelam que 76% dos mexicanos, 73% dos sul-africanos, 72% dos canadenses, 65% dos índios, 98% dos iranianos, 51% dos japoneses acreditam na vida após a morte. Não há dados sobre casos brasileiros? Tais estatísticas se relacionam ao percentual de pessoas que acreditam em vida após a morte em meio às referidas populações, mas não necessariamente acreditam em reencarnação. Sabe-se que, no Brasil, 60% da população acredita em vida após a morte, 18% apresenta dúvidas a respeito e 21% não acredita. Ainda não existem artigos científicos publicados em revistas acadêmicas sobre memórias de vidas passadas oriundas de crianças brasileiras, somente na literatura, como casos investigados por Hernani Guimarães Andrade e publicados em seu livro “Reencarnação no Brasil”. Entretanto, nossa revisão visou somente publicações no formato de artigos científicos indexados nas principais bases de dados do mundo; sendo assim, livros ou capítulos de livros não foram incluídos em nosso estudo. Justamente para ampliar as investigações acadêmicas sobre casos sugestivos de reencarnação no Brasil é que o Nupes está realizando essa pesquisa.
Você diria que as evidências científicas sobre essas memórias em crianças em todo o mundo são expressivas? Sim, os milhares casos estudados apresentam importantes similitudes, indicando a existência de um tipo de experiência humana que precisa ser mais bem compreendida, mas ainda há uma carência de estudos sobre o impacto de tais memórias sobre as crianças e a vida adulta delas. Outra linha de investigação muito importante é a verificação da veracidade dessas alegadas memórias e suas possíveis explicações. Entrevistas e análises de documentos são sempre realizadas visando apurar a validade e acurácia das alegações envolvidas nos casos. Em muitos deles foi possível identificar uma pessoa falecida que se encaixa nas alegações das crianças. Muitas vezes, afirmações bem específicas, como nomes, profissões e hábitos do falecido e de familiares, modo da morte e marcas de nascença com formato e local compatíveis com a lesão que gerou a morte. Em diversos casos, a criança fez as alegações mesmo sem ter havido nenhum contato prévio entre a família atual e a suposta família anterior, tornando improvável, assim, a possibilidade de compartilhamento de informações por vias convencionais de comunicação.
A jornalista Ana Elizabeth Diniz escreve neste espaço às terças-feiras. E-mail: anabethdiniz@gmail.com