Veneno

Agrotóxico causa rombo nos gastos com saúde e com licenças médicas

A cada dia, 26 pessoas são intoxicadas por defensivos agrícolas no Brasil, o que representa mais de uma por hora; mesmo assim, 2019 é marcado por um ritmo recorde na aprovação de novos defensivos agrícolas

Dom, 28/07/19 - 06h00

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Produtos fitossanitários, necessidade do agronegócio, veneno: todos esses termos são utilizados como sinônimo de agrotóxicos, dependendo do ponto de vista de quem se refere a eles.

Neste ano, 290 novos produtos do tipo foram liberados no Brasil – o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento desconsidera 28 deles por entender que foram aprovados em 2018. Contudo, a autorização de uso só constou no “Diário Oficial da União” em 2019. 

O ritmo de aprovações está acelerado: as liberações feitas até 22 de julho de 2019 – média de 1,3 ao dia – equivalem a quase 69% de todo o ano passado e há mais 560 produtos esperando liberação.

Se todos eles forem autorizados ainda neste ano, o número será o dobro das aprovações de 2018, que até então havia sido um ano recorde nesta década, com 422 novos itens.

O caminho adotado ignora os perigos dos agroquímicos. No Brasil, a cada dia, quase 26 pessoas sofrem algum tipo de intoxicação por agrotóxico – mais de uma a cada hora –, segundo relatório do Ministério da Saúde divulgado em 2018.

O documento – o mais recente consolidado – mostra que, entre 2007 e 2015, foram cerca de 84,2 mil pacientes. Aproximadamente 13 mil deles são de Minas Gerais (o Estado fica atrás apenas de São Paulo, com 15 mil).

Para Marcelo Firpo, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz, a discussão sobre o agrotóxico ultrapassa a questão ambiental: “É uma questão de direitos humanos e cidadania”, diz.

Custo alto

Estudo publicado em 2012 por Wagner Soares, analista do IBGE, e Firpo, pesquisador da Fiocruz, estabelece um valor para o que chamam de “externalidades negativas” do uso dos agrotóxicos: para cada dólar gasto com os produtos, até U$ 1,28 (R$ 4,84) são necessários para cuidados com a saúde e licenças de trabalho, por exemplo.

O foco da pesquisa foi o Paraná, mas ele acredita que a realidade do restante do país não seja tão diferente. “Com certeza, ela é parecida sempre que houver monocultivo, média ou pequena agricultura dependente de agrotóxicos”, disse Firpo.

Aplicando a fórmula desenvolvida pelo professor à receita gerada com a venda desses produtos no país, é possível estimar que, no Brasil, o custo aproximado com saúde e faltas ao trabalho por causa dos agrotóxicos chegue a US$ 11,3 bilhões por ano. Isso porque, segundo o Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Defesa Vegetal (Sindiveg), a venda de defensivos agrícolas alcançou cerca de U$ 8,9 bilhões (R$ 33,6 bilhões) em 2017, último ano com dados disponíveis.

Até o fechamento desta edição, o ministério não havia informado à reportagem os valores gastos com intoxicações por agrotóxicos.

Perigo potencial

Um levantamento realizado pela ONG Greenpeace sugere que boa parte das substâncias presentes nos registros deste ano é um perigo para a saúde e para o meio ambiente: 41% são produtos extremamente tóxicos (conforme a regulamentação anterior da Anvisa, modificada na última semana) e 32% são proibidos na Europa.

Entre as substâncias proibidas na União Europeia está o acefato, que não pode ser comercializado na região desde 2003 e está associado a impactos na fertilidade masculina, segundo o levantamento da ONG.

Os últimos dados do Ibama, de 2017, o posicionam como o quarto mais vendido no Brasil. Na lista do Ministério da Agricultura, ele consta em três novos itens. 

Outra substância polêmica na lista de aprovações é o sulfoxaflor (na composição de seis produtos da lista ministerial). Um estudo publicado em 2018 mostrou que colônias de abelhas que tiveram contato com esse ativo tiveram uma taxa 54% menor de reprodução – e são justamente elas algumas das principais polinizadoras da agricultura.

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Retrocesso no país

Especialistas consideram liberações como essa um retrocesso do Brasil no cenário internacional. "Um produto como o glifosato, que a Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc), da ONU, classificou como provavelmente cancerígeno deveria ter uma retirada programada do mercado", diz Luiz Cláudio Meirelles, pesquisador do Grupo Temático Saúde e Ambiente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco).

Atualmente, a regulação sobre o ativo está em consulta pública na Anvisa. Ele é o mais vendido no país, segundo o Ibama, e está em 12 novos itens liberados no Brasil. Na Europa, o produto está em uso até 2022, quando deve passar por uma reavaliação.

Meirelles também critica o novo marco regulatório dos agrotóxicos apresentado pela Anvisa na última semana. Agora, o risco de morte é o único critério para classificar agrotóxicos — assim, produtos que hoje são considerados “extremamente tóxicos” podem ter uma classificação mais branda. A reclassificação vale para cerca de 500 produtos, segundo a agência.

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A agência aponta que as novas medidas estão em consonância com normas internacionais, especialmente para a rotulagem dos produtos. “Se for para falar em harmonizar com outros países, quero ver o Brasil harmonizado com a Europa, proibindo os produtos que ela deixou de permitir”, diz. 

Intoxicações crônicas. Para Marcelo Firpo, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz), a discussão sobre elas ultrapassa a questão ambiental: “É questão de direitos humanos e cidadania”, diz.

Já Reginaldo Minaré, consultor em tecnologia da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), defende a importância dos agrotóxicos para a agricultura: “Se o agricultor pudesse pegar um pote de água, levar à missa e pulverizar água benta era ideal, porque o agrotóxico é um item caro na planilha de gastos dele”, diz.

Na perspectiva dele, a liberação dos novos produtos, cuja maioria são versões genéricas de outros já comercializados no Brasil, não vai fazer com que a quantidade de produtos utilizados na lavouras seja maior. “O agricultor não usa mais ou menos porque aumentaram os produtos na loja. Usa na medida adequada porque precisa contra as pragas”.

Agricultores são elo mais vulnerável

Os trabalhadores agrícolas são os mais atingidos pelas contaminações, de acordo com o Ministério da Saúde, somando quase 29% das ocorrências. O técnico agrícola aposentado Dimas Batista, 65, sofreu uma intoxicação no final da década de 70, quando trabalhava diretamente com agrotóxicos em plantações de cana de açúcar em Lagoa da Prata, em Minas.

Ele lidava com produtos contra ervas daninhas todos os dias, até que sintomas como falta de apetite, náuseas, dor de cabeça e nas pernas o levaram a procurar um médico em Belo Horizonte, quando confirmou: havia traços de agrotóxicos no sangue. “Quando comecei lá, não tinha equipamento de proteção individual e nem muita informação. Eu não sabia que era tão perigoso, então fui trabalhando. Hoje não mexo com isso nunca mais”, lembra. 

Preocupados, brasileiros compram mais orgânicos

À medida que um número cada vez maior de agrotóxicos chega ao mercado nacional, mais brasileiros passam a buscar alternativas sem contaminantes nas prateleiras dos supermercados e feiras livres – é o que indica a pesquisa inédita da Organis, que será divulgada em setembro e teve alguns resultados compartilhados antecipadamente com O Tempo. O estudo indica, por exemplo, que 19% da população urbana consome algum alimento ou bebida orgânico em um período de 30 dias. Em 2017, eram 15%.

Presidente da entidade setorial Organis, Cobi Cruz visualiza “uma relação de antagonismo entre o aumento do número de agroquímicos no país e o crescimento do interesse por alimentos livres deles”. Uma análise que é respaldada por dados da pesquisa Datafolha, divulgada na última semana, que aponta para um total de 78% de brasileiros que consideram o uso de pesticidas como inseguro à saúde humana.

Certamente, Fernando Ataliba é parte desse contingente. Presidente da Associação de Agricultura Orgânica (AAO), que reúne mais de 2.000 associados e atua há mais de 30 anos, ele diz ver essa “intensificação do uso de agrotóxicos com preocupação”. O tom de crítica se estende ao novo marco legal aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que torna o risco de morte o único critério para classificação de pesticidas.

“O consumidor está apavorado com essas mudanças. E, de modo geral, isso faz que mais e mais pessoas procurem alimentos agroecológicos”, examina Ataliba, que se vê em uma situação paradoxal: por um lado, celebra a popularização do setor, e, por outro, lamenta o uso excessivo de defensivos agrícolas.

“Não é algo que acontece só no Brasil. Em todo o mundo, é sensível a preocupação em se alimentar de forma mais saudável”, comenta Walter Matralongo, pesquisador em agronomia pela Embrapa. Não é à toa, aliás, que vendas de orgânicos no varejo crescem globalmente: de US$ 15,2 bilhões em 2000, esse mercado movimentou US$ 92,1 bilhões em 2018, conforme a Federação Internacional dos Movimentos da Agricultura Orgânica (Ifoam).

Matralongo observa ainda que, além da preocupação com a saúde (que mobiliza 64% dos consumidores, de acordo com estudo da Organis), há também preocupação em incentivar uma produção mais sustentável e que respeite o meio ambiente (o que atrai 18% das pessoas). 

Barreiras. Ainda que crescente, o mercado de orgânicos representa um universo tímido em relação aos itens convencionais. Do total de itens vendidos pela Companhia Brasileira de Distribuição (que faz negócios como GPA), apenas 3,65% são agroecológicos. A grande barreira está ligada a crença de que os preços praticados seriam inacessíveis. “Se a pessoa for atrás, buscar feiras, comprar diretamente do produtor, vai encontrar preços bem similares aos convencionais”, diz Cruz.

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