Cada vez mais as pessoas estão dispostas a viver da maneira que se sentem confortáveis, livres de amarras e conceitos. Para sair na balada junto com seus amigos, o cabeleireiro e maquiador Felipe Lucas, 26, usa vestido e salto alto, mas preserva sua barba natural. A intenção dessa composição inusitada do visual é propôr um despretensioso teste de limites impostos pela sociedade. “Minha apresentação geral no mundo é masculina. A vivência de uma travesti com o feminino é cotidiana, mas o que faço passa bem longe disso. É uma brincadeira com uma personagem que criei. Não é como vivo ou o que faço profissionalmente”, diz.
A noção de gêneros masculinos e femininos reproduzida pelo senso comum sempre passou por questionamentos frequentes: primeiro veio do movimento feminista, que colocou a mulher em lugares antes ocupados apenas por homens. Depois a contribuição de gays, lésbicas, travestis, transexuais, drag queens e cross-dressers reforça a desconstrução e trouxe experiências que mostram ser possível transcender a lógica binária de homens e mulheres.
Radicado em Belo Horizonte, o social media baiano Ravel Brasileiro, 26, não se preocupa com definições. Ele começou a se vestir de mulher depois de conhecer o mundo das drag queens. Ele se monta quase todos dias e gosta de ir ao trabalho com as unhas pintadas. Nas festas ele usa salto, nos barzinhos vai de meia-calça e, às vezes, até usa peruca. Contudo, ele garante que não segue nenhuma regra ou cobrança sobre como vai se apresentar nas situações cotidianas.
Ravel conta que, para que ele pudesse entender que as pessoas realmente podem representar o papel que quiserem no cotidiano, a série americana “RuPaul’s Drag Race” foi fundamental. “Comecei a me produzir e deixar a barba porque era muito trabalhoso ficar tirando o tempo todo. Então procurei fazer com que as coisas funcionassem no meu rosto. Gosto da minha barba, gosto de salto, de perucas e unhas grandes. Então, por que deveria tirá-la?”, questiona. Ele registra suas experiências de amadurecimento de gênero em um Tumblr (http://maybesomaybeno.tumblr.com).
Inspiração. Recentemente, o cantor austríaco Thomas Neuwirth, mais conhecido por sua personificação como a drag Conchita Wurst, representou o exemplo mais expressivo dessa tendência ao vencer o Festival Eurovision de 2014, na Dinamarca.
Segundo Ravel, o estilo não é uma novidade, e sua inspiração vem de outras referências. “Antes disso, já existiam pessoas se montando e preservando a barba. A drag Mathu Andersen foi pioneira. No Brasil, tivemos um grupo de homens nos anos 70, chamado “Dzi Croquettes”, que fazia isso de forma incrível”.
Padrões. A forma com que o sujeito se apresenta e organiza sua identidade visual oferece possibilidades de desconstrução do binarismo de gênero, afirma Carlos Camargos Mendonça, coordenador do Núcleo de Estudos em Estéticas do Performático e Experiência Comunicacional da UFMG. “Uma drag queen trabalha a reencenação do gênero. Ao mesmo tempo em que ela se veste de mulher, ela não deixa de parecer um homem vestido de mulher. Elas usam elementos dos padrões estéticos do feminino de modo excessivo para questionar e brincar com os gêneros. Ela não quer ser mulher. É uma crítica evidente ao gênero”, exemplifica.
Segundo Mendonça, as discussões no âmbito acadêmico apontam que os conceitos de gênero são arbitrários, criados para estabelecer hierarquias e desconsideram as novas vivências de identidade fluida, que transita entre os sexos. “Gênero é uma construção social, cultural e política, além de uma condição estética regulada”, contrapõe.
O pesquisador destaca que os antigos conceitos de gênero estão engessados e enraizados a tal ponto, que a homossexualidade masculina está associada à representação feminina, assim como a homossexualidade feminina está relacionada ao modo dos homens se comportarem. “A hierarquia social determina os papéis sexuais e exclui a possibilidade de transitar por aquilo que foge dos padrões. Com isso, passou a marginalizar-se grupos do intergênero, que contestam a noção de homem e mulher”.