Comportamento

Cometer erros e se arrepender é normal, mas excesso ou ausência vira problema

De acordo com especialistas, equívocos são parte da condição humana e pertencem a um processo de aprendizagem

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 11 de abril de 2024 | 06:00
 
 
Especialistas analisam que cometer erros e aprender com eles é normal, mas excesso ou ausência completa desse sentimento pode configurar um problema grave Foto: Istockphoto

A perenidade do sentimento pode ser confirmada pelo número de regravações. Depois de ser lançada, em 1935, na voz do cantor Silvio Caldas (1908-1998), que a compôs em parceria com Cristóvão de Alencar, a música “Arrependimento” ganhou versões de Marília Medalha, Elizeth Cardoso, Carlos Galhardo, Lana Bittencourt, Zé Renato, Os Originais do Samba, dentre outros. “O arrependimento quando chega/ Faz chorar, faz chorar/ Os olhos ficam logo rasos d’água/ E o coração parece até que vai parar”, dizem os primeiros versos do samba. 

Em 1960, Édith Piaf (1915-1963) apresentou ao mundo o poder catártico de “Non, Je Ne Regrette Rien”, de Michel Vaucaire e Charles Dumont, que durante muito tempo foi entendida como “não me arrependo de nada”, mas, recentemente, teve sua tradução atualizada para “não sinto falta de nada”. De toda forma, a letra em contato com a melodia explicita a força de uma emoção incontrolável. Em 2006, Caetano Veloso lançou a pungente “Não Me Arrependo”, que se tornou trilha da novela “Amor de Mãe”, em 2020. “Nada irá neste mundo/ Apagar o desenho que temos aqui/ Nem o maior dos seus erros/ Meus erros, remorsos/ O farão sumir”, canta o baiano, reforçando que não se arrepende. 

“Não vamos acertar sempre. O arrependimento vem para nos mostrar que, às vezes, podemos tomar atitudes que não são corretas. O arrependimento é uma mudança de atitude em relação a uma situação em que não se obteve êxito. A importância do arrependimento na vida das pessoas é que ele nos mostra que podemos cometer erros”, analisa o psicólogo Wellington Amaral. Colega de psicologia, Viviane Rogêdo concorda. “Arrependimento significa aprendizado e chance de compreender se nossas escolhas estão conectadas com nossos propósitos”, pontua Viviane. 

Amaral considera importante traçar uma diferença entre “arrependimento” e “lamentação”, que, no cotidiano, podem acabar confundidos. “Nem sempre uma pessoa que se lamenta se arrepende. O lamento é uma expressão, e, muitas vezes, pode vir carregado de emoção, mas pode acontecer de não haver arrependimento, que seria uma mudança total de atitude em relação à situação passada”, afirma. Na opinião do especialista, a alta incidência de arrependimento em nossa sociedade está intimamente ligada a uma formação cultural. 

“Cerca de 81% da população se diz cristã. E, uma das questões fundamentais do cristianismo, é uma mudança de vida, um arrependimento, e não podemos negar que isso está no nosso inconsciente. Carregamos as marcas de nossa cultura cristã”, aponta. Por conta disso, ele sublinha que “o arrependimento é, antes de tudo, um fator cultural”. “Enquanto cristãos, tendemos a nos arrepender dos nossos pecados. A própria oração do Pai Nosso ensina: ‘Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido’”. 

Ansiedade e compulsão costumam causar arrependimentos 

Para a psicóloga Viviane Rogêdo, comportamentos ansiosos, compulsivos e impulsivos tendem a causar mais arrependimentos. “A pessoa entra naquilo que chamo de looping existencial. Podem ser pequenos arrependimentos do dia a dia, ou situações graves, que envolvam questões financeiras e afetivas, como, por exemplo, a dificuldade em se livrar de um relacionamento abusivo”, detecta. Segundo ela, ao não medir as consequências de uma atitude, a pessoa fica exposta física e emocionalmente, o que acarreta arrependimento e frustração. “Pessoas que não sabem dizer ‘não’ e que têm dificuldade em colocar limites para si também se arrependem com frequência”, complementa.

A situação inversa denota outro tipo de problema. “Normalmente, pessoas que não se arrependem têm pouca abertura para a reflexão e a autocrítica”, avalia Viviane. O psicólogo Wellington Amaral segue na mesma linha. “É comum conversar com pessoas que sempre acreditam estar certas. Essas pessoas não aceitam opiniões de outras, e, muitas vezes, nem sequer escutam as pessoas ao seu redor”, destaca. Ele, no entanto, realiza um recorte essencial nessa seara, incluindo a perspectiva psicanalítica, ao discorrer sobre as chamadas “estruturas clínicas”. 

“A maioria das pessoas apresenta, segundo a psicanálise, a estrutura neurótica, que é marcada pela culpa e pela angústia. A psicose é uma estrutura marcada pela alteração da realidade, com a presença de delírios e alucinações. E o perverso é aquele que pode apresentar ausência de angústia e culpa. Na verdade, o perverso pode se angustiar de outras maneiras, quando seus planos não dão certo. Não é comum uma pessoa que se enquadra em uma estrutura perversa se arrepender, eles acreditam que estão sempre certos e seguem suas próprias leis”, compara. 

Amaral, contudo, sublinha que o cenário é complexo, de difícil definição. “Não podemos deixar de considerar que existem sujeitos neuróticos que apresentam um alto grau de narcisismo, com dificuldade de se arrepender, por questões relacionadas ao seu próprio ego, como se fosse uma blindagem. Ou, no caso da psicose, o sujeito cria a sua realidade e se fixa nela, o que também o impediria de se arrepender”, pondera. 

Se arrepender é normal, mas limites devem ser observados

Uma expressão que se impregnou de tal forma ao imaginário popular que ganhou a força de um ditado revela a presença incontornável desse sentimento na sociedade brasileira: “Se arrependimento matasse…”. O psicólogo Wellington Amaral argumenta que a “tonalidade” exagerada da sentença ressalta o potencial coletivo do arrependimento. “Quem nunca teve equívocos na vida?”, questiona. Embora se arrepender seja natural, ele considera que há limites a serem observados. 

“Existem pessoas que carregam o passado nas costas, e, com isso, um nível alto de culpa que pode prejudicar o seu dia a dia. O arrependimento faz parte da vida, ele é importante, mas é necessário se arrepender e virar a página. Deixar a ferida cicatrizar e seguir em frente. Certos erros na vida nós não podemos reparar, as consequências ficam. Não podemos deixar um erro do passado nos paralisar e impedir de seguir em frente. Precisamos observar a pessoa que se culpa muito, pois, ao carregar esse sentimento constantemente, ele pode ocasionar doenças relacionadas à ansiedade e depressão”, alerta. Para tanto, Amaral recomenda a terapia como forma de superação, afinal, “somos humanos, cometemos erros, e precisamos trabalhar a resiliência”. 

Em sua prática clínica, o psicólogo se depara com arrependimentos de todas as idades. “Tendemos a achar que somente os idosos passam por situações de arrependimento. No entanto, tenho notado que jovens e adultos na faixa etária entre 20 e 35 anos apresentam muitas frustrações, por não terem conseguido realizar algum de seus projetos devido a escolhas, ou à falta de atitude, o que traz muita culpa e o sentimento de arrependimento, que pode afetar sua autoestima”. Amaral relaciona essa situação a um quadro amplo, de pressão social. “A sociedade dita padrões cujo preço a se pagar pode ser muito alto, e não atender a essas expectativas tende a gerar arrependimentos e frustrações”, finaliza. 

Depoimentos 

Natanael Lisbon dos Santos, 44, serviços gerais 

“Eu me arrependo de não ter estudado mais quando tive a oportunidade. Hoje, eu estou voltando a estudar. Saí de uma área em que eu era vendedor e hoje estou como serviços gerais, justamente para ter tempo para voltar a estudar, para poder conquistar as coisas que eu não conquistei quando eu tive essa oportunidade.”

Stephanie Lorrana dos Santos Silva, 30, estilista e consultora de moda 

“Não me arrependo, porque acho que a vida é sobre vivência e experiência, e a gente está aqui na Terra para complementar. Todo mundo se complementa com tudo aquilo que faz na vida e no dia a dia. A gente não deve se arrepender de nada porque, se a gente deixa de fazer alguma coisa, se torna fracassado. Acho que a partir do momento que a gente busca complementar as coisas e aprender todos os dias, todo mundo tem o que mostrar, até com os erros a gente aprende na vida.”

Bruno de Souza, 38, jornalista 

“A gente sempre se arrepende de alguma coisa, e aí tentamos melhorar cada dia mais. A gente olha, pensa, analisa e vai também corroendo aquela culpa. É normal, né. Talvez eu tenha machucado uma pessoa que não deveria, não merecia, mas foi no calor da emoção. O pedido de desculpas já foi feito, já rolou o perdão, mas fica aquela sensação de que não precisava tanto. A gente acaba deixando a emoção tomar conta, mas precisamos trabalhar nossa inteligência emocional.”