A ideia de escolher uma profissão, especializar-se nela por meio de graduação e cursos complementares e seguir nesse caminho até a aposentadoria foi, por muito tempo, considerado o ápice de uma carreira. O objetivo era conseguir estabilidade financeira e longevidade em uma organização por meio de um trabalho sem muitas novidades.
No entanto, essa forma de encarar um ofício tem mudado nos últimos anos. Alguns fatores, sociais e pessoais, têm colocado em cena a chamada carreira não linear, trajetória profissional marcada pela diversidade de experiências, em detrimento do percurso único e previsível em uma mesma área ou empresa.
A perspectiva de aposentadoria cada vez mais longínqua é um desses aspectos. Pesquisa publicada em 2023 pelo Banco Mundial projetou aumento da idade mínima de aposentadoria para 78 anos em 2060, caso não seja feito nada para aprimorar o atual sistema previdenciário.
A forma como a Geração Z encara o trabalho é outro fator. Estudo de 2024 da Deloitte, empresa de auditoria e consultoria, apontou que 86% dos jovens nascidos entre 1997 e 2012 consideram que ter um senso de propósito é essencial para a satisfação no trabalho. A pesquisa mostrou também que 44% rejeitariam propostas de organizações que não se alinham com seus princípios éticos.
Doutora em administração e especialista em gestão de saúde corporativa, a psicóloga Renata Livramento analisa que tanto as transformações globais quanto a maneira de pensar das novas gerações impactam nessas mudanças.
“Tudo isso influencia na forma como o trabalho é realizado, nas relações que se estabelecem, no surgimento de novas profissões e até no desaparecimento de outras. Um exemplo atual é o avanço das tecnologias, especialmente da inteligência artificial. Essas mudanças também reforçam a ideia de que a carreira hoje não é mais linear”, diz.
Ela analisa que para os baby boomers e a geração X, por exemplo, o trabalho significava um valor em si. “Havia até ditados que expressavam isso, como ‘o trabalho dignifica o homem.’ A identidade dessas gerações estava profundamente ligada ao trabalho: trabalhar muito, ser fiel a uma empresa ou permanecer no mesmo local eram valores centrais”, destaca.
Esses princípios, no entanto, não encontram tanta ressonância nas gerações mais novas. “Para elas, o trabalho é apenas uma das várias possibilidades de realização, não é apenas fonte de renda, mas também não é o único caminho para se realizar”, comenta.
Mas, afinal, o que diferencia uma carreira não linear de um tradicional?
A principal distinção está no formato da trajetória profissional, como explica a mentora em liderança e comunicação executiva Leila Said. “Na carreira linear, o percurso é mais tradicional: a pessoa entra em uma área, cresce dentro dela e o sucesso costuma ser medido pela conquista de cargos de liderança, chefia ou diretoria”, começa.
Já a carreira não linear é mais fluida. “O profissional pode transitar entre diferentes áreas, setores ou até formatos de trabalho. O crescimento não é definido apenas por cargos hierárquicos, mas pelo repertório adquirido, pela diversidade de experiências e pela capacidade de aplicar conhecimentos em contextos variados”, diz.
Quem segue uma carreira não linear também deve ser mais criativo, que é a “capacidade de imaginar cenários novos e promover inovação”, pondera Renata Livramento. “Além dela, a adaptabilidade e a resiliência são fundamentais: adaptar-se rapidamente às mudanças e lidar com frustrações sem perder a capacidade de seguir em frente”, afirma.
Outra habilidade desenvolvida nesse tipo de carreira é o trabalho colaborativo. “A inteligência coletiva, quando bem articulada, é sempre maior do que a individual. Saber colaborar é essencial para navegar nesse mundo de mudanças aceleradas e carreiras não lineares”, reitera.
Prós e contras da carreia não linear
É inegável que tanto a carreira tradicional quanto a não linear carreguem seus prós e contras. Quem opta pelo caminho habitual, com especialização e vislumbre de crescimento em uma área apenas, certamente terá mais chance de manter-se estável tanto na parte financeira quanto na pessoal. Por outro lado, também limita a possibilidade de aprender coisas novas e desenvolver habilidades inimagináveis, além de ter menos chances de um ganho financeiro mais considerável.
Já a vantagem da carreira não linear é justamente ampliar as possibilidades de atuação, e, consequentemente, aumentar o número de oportunidades de trabalho. “As carreiras não lineares permitem crescimento pessoal e profissional e geram mais conexões”, aponta a mentora de carreiras Leila.
Especialista em gestão de saúde corporativa, Renata Livramento concorda com Leila. “Para transitar por diferentes carreiras, empregos, áreas ou até empreender em setores distintos, é preciso desenvolver competências diversas. Caso contrário, não há preparo suficiente para ter sucesso. Esse é um ponto central”, aponta.
Por outro lado, quem decide por esse caminho pode enfrentar alguns desafios. O primeiro deles é encontrar uma “trava” na mentalidade das instituições. “Muitas organizações ainda esperam dos profissionais de hoje a mesma atitude de antes: construir uma carreira linear, especialista e estável.
Nesse contexto, pode ser difícil compreender que um jovem valorize, por exemplo, a flexibilidade, sem que isso signifique menor comprometimento ou queda na qualidade”, pondera. Além disso, é fato que a carreira não linear oferece menos estabilidade e menos previsibilidade.
Outro desafio é a necessidade de um autoconhecimento profundo. “Como existem muitas possibilidades, escolher pode se tornar ainda mais difícil. O cérebro humano prefere opções limitadas, pois facilitam a tomada de decisão”, identifica.
Dicas para seguir uma carreira não linear:
Descubra o que você gosta. Anote todos os seus desejos de carreira e tente acolher aquilo que mais interessa.
Seja curioso e aberto. Experimente diferentes áreas, projetos e funções ainda na sua área. Isso pode de dar um norte do caminho a seguir.
Desenvolva habilidades deficientes. Perceba em seu dia a dia profissional atitudes que precisem de ajustes e peça ajuda ao seu superior ou colegas para tentar melhoras.
Faça networking. É fundamental construir uma rede diversificada para que o mercado “enxergue você.”
Busque conhecimento contínuo. Cursos, workshops e leituras são essenciais para acompanhar mudanças rápidas do mercado.
Aceite a instabilidade. Tenha em mente que nem sempre haverá um caminho claro. Aprenda a lidar com a incerteza e a transformar desafios em oportunidades.