Do momento em que se acorda ao instante em que se adormece, as telas são um elemento onipresente na rotina de um sem-número de brasileiros que não desgrudam os olhos de smartphones, televisores, computadores e tablets. Isso porque, hoje, esses dispositivos tecnológicos são capazes de se integrar às diversas dimensões da vida das pessoas. Seja para o lazer, o trabalho ou o estudo, para ler notícias ou para interagir com amigos, as ferramentas digitais são um recurso que se provou eficiente e sem o qual é difícil imaginar como o mundo contemporâneo funcionaria. Sobretudo, no contexto da pandemia da Covid-19, quando medidas de isolamento e de distanciamento social tiveram que ser implementadas em todo o mundo.

Entre especialistas, se estabeleceu o consenso de que, dificilmente, a sensível tendência de virtualização das relações humanas será revertida. Afinal, as possibilidades de soluções remotas têm se mostrado eficazes e, em alguns casos, desejáveis. Porém, esse chamado “novo normal”, caracterizado pelo uso disseminado e frequente de telas, implica prejuízos à saúde. 

“Não é de agora que a gente vem encarando problemas pelo uso excessivo da visão de perto. Com a introdução da escolarização e, agora, com a revolução tecnológica em curso, a gente vem observando que alguns diagnósticos têm se tornado mais comuns, como a síndrome do olho seco, que gera ardência na região ocular e que era mais comum entre mulheres mais velhas, mas que hoje ocorre a todos, indistintamente”, expõe o oftalmologista Leonardo Coelho, do Instituto dos Olhos de Minas Gerais.

O especialista cita também que as pessoas estão mais intolerantes a pequenos graus, o que leva a um aumento das queixas de dores de cabeça vespertinas ou noturnas. “Isso acontece porque, para enxergar mais de perto, a musculatura dos olhos precisa se contrair. Por outro lado, para ver de longe, esses músculos ficam mais relaxados. Como estamos passando cada vez mais tempo forçando a visão de perto, mesmo pequenos graus, passam a causar incômodo”, indica. 

Na avaliação de Coelho, o maior problema advindo do uso constante de telas é a miopização da população. “Da década de 70 para cá, duplicou o número de míopes”, destaca, dizendo que é possível contornar esse mal com o uso de óculos e de lentes. Entretanto, se o grau de miopia for superior a cinco, considerado alto, complicações tendem a ocorrer. “Se uma criança ou adolescente alcança esse nível de deficiência, quando ela se tornar adulta, pode ficar mais vulnerável ao glaucoma (doença ocular causada principalmente pela elevação da pressão intraocular que provoca lesões no nervo ótico e, como consequência, comprometimento visual), desenvolver catarata precocemente (embaçamento do cristalino, que provoca perda progressiva e indolor da visão) ou sofrer com o descolamento de retina (ocorre quando há o desprendimento dessa estrutura no interior do globo ocular), por exemplo”, explica. 

Cuidados. O oftalmologista indica algumas iniciativas para o tratamento e, principalmente, para a prevenção desses problemas. “O que a gente pode fazer é corrigir aquele grau que a pessoa tem por meio do uso de óculos e lubrificar o olho se houver sintomas de olho seco”, pontua, lembrando que dores de cabeça vespertinas e noturnas são indicativas para consulta médica.

“Preventivamente, todos nós devemos nos acostumar a usar o computador mais afastado, em uma distância de mais de 50 cm, com um brilho não muito intenso da tela e com ambiente bem iluminado, preferencialmente que se beneficie de luz natural”, salienta. Coelho sugere que, se possível, aulas remotas sejam espelhadas para aparelhos televisores, permitindo que crianças e adolescentes possam acompanhar a orientação educacional mais de longe. Por fim, ele sugere que se busque construir o hábito de fechar os olhos mais prolongadamente a cada uma hora frente à tela. “Essa é uma estratégia eficiente para descansar a musculatura do olho”, diz. 

Problemas posturais 

Além dos prejuízos à visão, o uso disseminado e frequente de celulares, tablets e computadores têm repercutido em problemas posturais mais comumente. É o que explica o fisioterapeuta e quiropraxista Rafael Bonaparte, informando que o fenômeno está relacionado à adoção de um estilo de vida sedentário e menos ativo, onde passamos muito mais tempo parados em uma só posição. 

O especialista expõe que, “diferentemente do que muitos pensam, o que é o mais prejudicial para a saúde da nossa coluna e demais partes do corpo é permanecer muito tempo parado em qualquer postura, do que ter uma alteração postural”. “Hoje sabe-se que ‘maus hábitos posturais’ são mais prejudiciais e nocivos que ter ‘alterações posturais’. Em resumo, no primeiro caso é uma questão social, no qual a pessoa assume uma postura desleixada por longos períodos. No segundo caso é uma questão estrutural, em que a pessoa pode nascer, desenvolver na fase de crescimento ou por alguma doença uma postura considerada fora dos padrões normais anatômicos”, explica. 

Conforme Bonaparte detalha, enquanto, há cerca de uma década, as pessoas que mais procuravam por tratamentos posturais tinham como origem de seus problemas causas físicas estruturais, hoje essa realidade é outra. “Além de terem aumentado a busca por esse tipo de tratamento, as causas passaram a ser predominantemente sociais, ou seja, por ficarem parados durante muito tempo em más posturas”, examina. “Isso acontece porque posturas prolongadas desleixadas fazem com que o corpo assuma essa nova forma perdendo a capacidade de se endireitar”, determina. 

A partir de sua experiência clínica e de pesquisas médicas, o fisioterapeuta informa que as queixas mais comuns e que estão relacionadas ao uso excessivo de telas são: a protrusão cervical (cabeça para frente), a hipercifose torácica (tronco arqueado para trás) e a retificação da lordose (redução da curvatura da parte baixa das costas). “Estas alterações posturais provocadas por posturas mantidas podem causar dores e perdas de função, ou seja, dificuldades ou incapacidade de executar atividades de vida diárias”, diz. 

Prevenção. “Falo sempre aos meus pacientes que a melhor postura é sempre a próxima. Portanto, mudar regularmente a postura é mais fácil e indicado que tentar permanecer durante muito tempo em uma ‘boa posição’”, aconselha Rafael Bonaparte, acrescentando que, para isso, regular o tempo exposto ao uso de telas é providencial. “Além disso, é muito importante que façamos intervalos frequentes da postura sentada durante as tarefas nessa posição”, acrescenta. 

“Oriento sempre que, no máximo, a cada 30 minutos sentado, a pessoa deverá ficar pelo menos um minuto de pé. Levante, ande faça alguns movimentos e alongamentos quando precisar ficar muito tempo sentado. Alterne atividades estáticas com atividades dinâmicas no seu dia a dia. Mantenha também bons hábitos de vida como atividades físicas regulares. As atividades físicas devem conter exercícios aeróbicos, de reforço muscular, além de alongamentos e ganho de mobilidade articular para serem completos”, sugere.

Outros danos à saúde

Metabolismo. Segundo uma pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), até mesmo o sistema metabólico pode ficar comprometido diante de uma rotina em que o tempo de tela é excessivo. 

Realizada no contexto do Estudo de Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (Erica), a investigação considerou dados de 36 mil adolescentes brasileiros, entre 12 e 17 anos, que passam, em média, três horas por dia em frente a computadores, tablets, televisores, videogames e celulares. A conclusão é que o tempo sedentário é fator de risco para síndrome metabólica, que envolve obesidade abdominal e problemas relacionados a diabetes, colesterol e pressão arterial alta. Contudo, os especialistas identificaram que cultivar o hábito de não se alimentar frente aos dispositivos tecnológicos pode ser uma forma simples de reduzir tais riscos.

Dependência. Em 2017, estudiosos da Universidade da Coreia em Seul investigaram como essa dependência se daria do ponto de vista da química cerebral em adolescentes. Entre os resultados, apontaram que, comparados aos demais, aqueles que apresentaram sinais de vício tinham níveis mais significativos de depressão, ansiedade, insônia e impulsividade. Mas o coordenador da pesquisa, o neurorradiologista Hyung Suk Seo, sublinha que são necessários mais estudos antes de se pensar em aplicações clínicas da descoberta.

Já um estudo norte-americano publicado no periódico científico “Preventive Medicine Reports”, em 2018, indica que até mesmo a curiosidade de aprender coisas novas pode ser reduzida. No caso daqueles que usam as telas multimídia por mais de sete horas por dia, 22,6% dos adolescentes demonstravam desinteresse – contra 9% dos que usavam por uma hora por dia. Além disso, a pesquisa aponta que aqueles que ficam mais tempo usando essas ferramentas tecnológicas teriam o dobro de chance de demonstrarem sinais de impaciência e de serem diagnosticados com quadros de depressão.

Insônia. “A diminuição do tempo de sono é um fenômeno que vem se consolidando e se acentuando em todo o mundo. Com o advento da luz elétrica e de mídias eletrônicas, o homem foi ficando igual a um mosquito, sendo atraído pela luminosidade mesmo quando isso é maléfico. A verdade é que, quando jogamos luz sobre nossos olhos, dormimos menos. Mas seguimos tendo obrigações que exigem de nós continuar acordando cedo”, avalia o psiquiatra Dirceu Valladares Neto, que é especializado em medicina do sono.

Ele lembra que dormir mal é uma fonte de comprometimentos diversos, afetando o sistema imunológico e sendo um fator para acidentes de trânsito e para distúrbios neuropsicológicos, por exemplo.