Qualquer pessoa adulta, capaz, lúcida, orientada e consciente pode recusar tratamento terapêutico proposto por um médico – se não houver risco para a saúde de terceiros, se não for o caso de doença transmissível e se o paciente não for gestante. É o que determina uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada neste mês no “Diário Oficial da União”. 

De acordo com as novas normas éticas, o atendimento médico às pessoas grávidas “deve ser analisado na perspectiva do binômio mãe e feto”. A resolução institui que o médico pode classificar a situação de recusa de atendimento como abuso de direito da mãe em relação ao feto. Nesse caso, o profissional da saúde deve comunicar ao diretor técnico do hospital quando discordar da decisão da pessoa gestante. 

Em situações de iminente risco à vida, o médico fica autorizado a tomar quaisquer as medidas necessárias, independentemente do posicionamento do paciente.

Desde sua publicação, a decisão tem provocado preocupação, uma vez que poderia estimular ou justificar a adoção de procedimentos que não são desejados pelo paciente gestante, muitos deles caracterizados como “violência obstétrica”.

“Quando bem informado, nenhum paciente vai deixar deixa de ouvir e acatar a recomendação médica – mesmo que depois de uma segunda opinião”, analisa o médico obstetra Edson Borges de Souza, coordenador da residência médica em ginecologia e obstetrícia no Hospital Sofia Feldman, em Belo Horizonte. Para ele, que defende o estímulo ao diálogo, a medida é desproporcional.

“O que ocorre é que, muitas vezes, a situação não é bem caracterizada. Há profissionais que buscam incutir medo nos pacientes, forçando procedimentos. E, agora, com a decisão, a autonomia da gestante em hipótese de risco fica ainda mais limitada”, sugere Souza. “Não é uma resolução que aumenta a segurança da pessoa grávida”, conclui.

Na contramão de uma série de práticas que ampliam a autonomia de gestantes, como os planos de parto, e de um crescente debate sobre métodos mais humanizados de concepção e sobre a violência obstétrica, a medida é vista como “uma resposta da corporação médica a esses avanços”, avalia o profissional da saúde.

Regra favorece violência obstétrica, diz doula

A resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que inclui gestantes no grupo que não pode recusar atendimento terapêutico causou indignação entre militantes pelos direitos das mulheres e parto humanizado.

“Não faz sentido dizer que, por ser gestante, você não pode decidir sobre um tratamento que está se propondo. Essa é uma medida que, para pessoas adultas, só faz sentido se o paciente estiver inconsciente e em risco de morte”, examina Polly Amaral, que é doula, ativista da Rede Parto do Princípio e coordenadora do Grupo de Apoio Ishtar – Espaço para Gestantes.

Na opinião dela, a resolução pode ser lida como uma autorização velada à violência obstétrica. “No Brasil, são muito comuns procedimentos como a episiotomia (quando é feito um corte entre a vagina e o ânus) e outros que causam sofrimento, mas que não encontram respaldo na ciência”, estabelece.

De fato, a Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmou que não há evidência sobre a necessidade da episiotomia.

Para Polly é “explícito que pacientes gestantes podem, sim, recusar o atendimento, pedir uma segunda opinião, não concordar com o tratamento que o médico está propondo”. Ela pondera que seria mais efetivo que o CFM “fiscalizasse a atividade médica e promovesse ações de formação continuada”.

Até o fechamento desta edição, o CFM não havia respondido os questionamentos enviados pela reportagem.