Todo dia ela faz tudo sempre igual: sacode a si mesmo antes das 6h da manhã – ainda que a noite tenha sido tensa, pelo sobressalto a cada barulho vindo do quarto do filho. Com o sorriso pontual, serve o café, dá banho na criança e toma o seu. Deixa o pequeno na escola, e diz que é pra se cuidar – e segue para ao trabalho. Meio-dia é ainda mais tumultuado: ligeira, busca a cria e alimenta duas bocas – insistindo que legumes são, sim, bons. Até as 18h, já ajudou o guri nas atividades escolares e desenvolveu as suas; e ao mesmo tempo em que interage com o filho, espia o rol de afazeres. Cuida da casa, cozinha e ainda arranja tempo para momentos lúdicos. “Do nada”, o sol se põe. Hora de servir a mesa, contar uma historinha e, finalmente, por a criança para dormir, para depois retomar a agenda, verificar orçamentos, estabelecer tarefas do dia seguinte. Meia-noite, vai finalizar trabalhos e estudos até que o sono vença a batalha.
A descrição acima aplica-se ao cotidiano de um sem-número de mães – uma jornada que, mesmo com todo o amor envolvido, acaba impactando a saúde física, mental e emocional. Nos Estados Unidos, o fenômeno já tem até nome: mommy burnout, relacionado à exaustão e ao estresse crônico. Uma sensação de esgotamento que é mais comum do que se imagina, como confirma a ginecologista obstetra Quesia Villamil. Como ela observa, ao longo dos séculos, as mulheres vêm ocupando vários papéis sociais. “Elas estão no mercado de trabalho, gerem seus lares, estudam, pesquisam... De maneira geral, se alguém mais velho adoece, seja pai, mãe, sogro ou sogra, são elas que se desdobram para dar apoio”, cita.
Muitas, além de cuidadoras, passaram a ser mantenedoras da casa. “Então, não bastasse a jornada dupla, ela se torna mãe e tenta encaixar o filho nessa rotina. Mas o dia segue tendo 24 horas – e a conta não fecha”, explica.
São muitas, pois, as mães que todo dia só pensam em poder parar – por um instante que seja. Mas que ao fim contemporizam. “Elas relutam em assumir que há uma sobrecarga, pois foram levadas a crer que dariam conta de tudo sozinhas e ainda teriam tempo para o salão de beleza”, diz Quesia. “Por isso, se sentem mal, pensando que é algo que acontece apenas com elas”, complementa.
Para alento geral, muitas mulheres vêm quebrando essa espiral do silêncio, inclusive usando as redes sociais para relatos que vão na contramão da noção de maternidade que ainda pauta o senso comum – principalmente neste domingo (12), em que se celebra o Dia das Mães.
Vida real. A produtora de conteúdo Nathalia Ilovatte, 31, por exemplo, mira a maternidade real nas postagens que alimentam o blog Entre Borboletas. E mesmo que antes de ser mãe já tivesse uma perspectiva questionadora sobre o papel da mulher na sociedade – e se identificasse com valores do movimento feminista –, precisou levar um susto para entender que a maternidade estava desencadeando em si um certo esgotamento. Na celebração de um casamento, sentiu-se mal. Supondo uma queda de pressão, tratou de entregar o filho Benjamin, à época com 8 meses, a uma amiga, antes de despencar em uma cadeira.
Em uma consulta, mais uma vez com o bebê no colo, veio o diagnóstico: a sensação de fraqueza, tontura e sensibilidade à luz, seguida de dor de cabeça, era um princípio de enxaqueca. A razão? A atribulada rotina. Nathalia reconhece: “tinha dificuldades de delegar tarefas”. O susto mudou essa perspectiva. Hoje, ela se sente privilegiada por dividir de forma o mais equânime possível as tarefas do lar e os cuidados do filho com o marido.
Outro exemplo é o da influencer Lu Ferreira, 34. Em um blog, ela revela, intimamente, como se deu conta do ritmo acelerado que vinha levando: no segundo mês pós-parto, passadas várias noites maldormidas, apagou. Acordou ao se dar conta de que havia deixado uma panela no fogo. O “quase incêndio” virou lição: ela não era, e nem deveria ser, a Mulher Maravilha.
Sororidade. Sensação de esgotamento similar levou a empreendedora e community builder Mariana Bicalho, 40, a fazer um pedido inusual de Dia das Mães à família: uma diária em um hotel, em BH mesmo, para passar alguns momentos consigo mesma. “Ser mãe é maravilhoso, mas a maternidade vem com muitos desafios – e precisamos falar sobre isso”, observa ela, que mantém o grupo Mommys no Facebook, reunindo mais de 6.400 mulheres.
“Sim, lá falamos de fraldas e mamadeiras, mas não são os assuntos predominantes. O desabafo, o ‘eu preciso de um abraço’, os posts do grito são frequentes”, aponta.
Ela mesma reconhece que já se sentiu esgotada várias vezes. E já chorou de cansaço. Por isso, soube reconhecer que precisava passar um tempo consigo. “Aceitar isso é importante. Está tudo ok se sentir assim, não te faz mais ou menos mãe, não tem nada a ver com o amor que você sente pelos filhos. É um processo de aceitação que está ligado à desmistificação do que é ser mãe”, esclarece. Curiosamente, a empreendedora vê na fadiga resultante de tanta cobrança e comparação a razão dessa busca por diálogo. E falar sobre isso, observa
Nathalia, faz com que mais mulheres se aproximem e entendam que “não há nada de errado com elas”. E que não precisam se sentir culpadas. “São muitas as mães que passam por algo semelhante”.
Primeiro, fique bem consigo
“Em caso de despressurização da cabine, máscaras de oxigênio cairão automaticamente. Puxe uma das máscaras, coloque-a sobre o nariz e a boca, ajustando o elástico em volta da cabeça, e respire normalmente; depois, auxilie a criança ao seu lado”. É a essa norma de segurança aérea que muitas mães recorrem para ilustrar a importância de estar bem consigo primeiro para, então, cuidar de seus filhos. Recado reforçado pela obstetra Quesia Villamil.
A médica ressalta que é fundamental que as mães busquem reduzir expectativas: “Muitas veem na maternidade uma realização, mas devem entender que, como em qualquer relação, há alegria, mas também frustrações”.
Outro importante aspecto é fugir do que chama de síndrome da Mulher-Maravilha: “Peça – e, principalmente, saiba aceitar – ajuda! A mãe não precisa e nem deve dar conta de tudo sozinha”.
É fundamental, ainda, priorizar a si, permitindo-se um tempo consigo mesma. Embora a causa da depressão pós-parto seja difusa e diversa, ancorada inclusive na complexa relação entre mãe e filho, Quesia acredita que, além de reduzir a sensação de exaustão que acompanha tantas mães, seguir tais recomendações ajuda, em parte, a diminuir a incidência da doença, que atinge mais de uma em cada quatro brasileiras, segundo pesquisa de 2016 da Fiocruz.
Problema exige uma nova postura e políticas públicas
A simples existência do termo “mommys burnout” indica que, sim, mães estão particularmente sujeitas a serem abatidas por uma sensação de esgotamento. Entretanto, é importante dizer que esta não é uma idiossincrasia da maternidade, mas o resultado de uma série de padrões sociais e culturais que, embora tenham sofrido alguma alteração, continuam vigentes na contemporaneidade. Afinal, embora ocupem cada vez mais papéis na sociedade, as mulheres seguem responsáveis por uma série de trabalhos tidos como próprios do feminino. É o que avalia Sabrina Finamori, professora do Departamento de Antropologia e Arqueologia da UFMG.
Divulgada no mês passado, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad) identificou que as mulheres dedicam 21,3 horas semanais a tarefas domésticas e cuidados com pessoas simultaneamente, como, por exemplo, cozinhar enquanto cuida dos filhos. Entre os homens, são 10,9 horas semanais. Dados que justificam o porquê de muitas mulheres que têm ou tiveram companheiro reivindicarem o termo “maternidade solo” – que surgiu para substituir o estigmatizado “mãe solteira”. “Elas consideram que tanto a divisão de tarefas domésticas quanto o cuidado mais direto com os filhos sempre foram tão desiguais que se tratava de uma maternidade solitária”, examina a antropóloga.
Sabrina avalia que o chamado “mommys burnout” é, antes de uma doença, um sintoma social. Dessa maneira, “mudanças nas dinâmicas domésticas em relação a uma divisão mais igualitária no cuidado de crianças e nas tarefas da casa são fundamentais”. E há, de fato, uma tímida transformação em curso: em 2016, 61,9% dos homens se dedicavam a tarefas do lar, número que saltou para 78,2% em 2018 – conforme a Pnad. Entre as mulheres foi de 89,9% para 92,2%, considerando o mesmo período.
Políticas públicas. Ao imaginar formas de cuidar da saúde física, mental e emocional das mães, “é importante não se esquecer de políticas públicas mais amplas, como as creches em tempo integral, que são fundamentais especialmente para a garantia de maior autonomia para mulheres de menor renda. A maioria delas, se não conta com uma rede de suporte, como mães, amigas ou vizinhas, que possam ficar com seus filhos pequenos, acaba fora do mercado de trabalho ou em trabalhos precários e informais”, observa a antropóloga.
“Mesmo as mulheres que têm renda mais alta e empregos formais enfrentam, ainda hoje, inúmeras dificuldades no mercado de trabalho, e suas carreiras estão longe de seguir o mesmo curso se comparado às trajetórias dos homens, mesmo que estes sejam pais”, reforça Sabrina.
Um cenário que só vai mudar diante de um debate mais sólido e efetivo, a professora vê com bons olhos a forma como as mães têm se organizado. “As mídias sociais têm sido ferramentas essenciais para o compartilhamento de experiências, suporte mútuo e reflexão”, diz, citando como exemplos o movimento em torno do parto humanizado – que traz em seu bojo discussões sobre a maternidade para além de idealizações –, e coletivos de mães – que põem em pauta os sentidos sociais da maternidade. “Toda essa movimentação é fundamental tanto para problematizar a realidade da maternidade como também para articular reivindicação de direitos”, conclui a estudiosa.
Pelo prisma da psicologia
Paradigma. “Sabemos das múltiplas jornadas que uma mulher possui, seja por escolha própria ou pelo papel social que é esperado dessa mulher. E uma delas é a justamente a idealização da maternidade, no sentido de romantizar essa fase da vida”, pontua a psicóloga e psicanalista Gabriella Cirilo.
Comercial de margarina. A mestranda pela Faculdade de Medicina da UFMG pontua que propor uma visão sem tabus sobre a maternidade ainda causa estranhamento, pois a versão “culturalmente aceita e esperada é a de um conto de fadas”.
Desconstruir. Gabriella recorre à filósofa e historiadora francesa contemporânea Elisabeth Badinter para defender “a desconstrução da ideia que todas as mulheres nascem com essa capacidade materna natural”.
Mulher e mãe. E vai a Jacques Lacan (1901-1981) para frisar que “a mulher não se torna ‘mais mulher’ ou mais completa com a chegada de um filho”.