Às margens desse mundo que parece viver em função de posts, curtidas e tuítes estão os desconectados. Parcela que, segundo pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), é bastante significativa: representa um terço da juventude mundial – cerca de 346 milhões de pessoas. Na avaliação do órgão, esse contingente offline perde oportunidades, exacerba as desigualdades e reduz a capacidade de os jovens participarem de uma economia cada vez mais digital.
“Para o melhor e o pior, a tecnologia digital é agora um fato irreversível em nossas vidas”, disse o diretor executivo do Unicef, Anthony Lake. “Em um mundo digital, nosso desafio duplo é como mitigar os danos, ao mesmo tempo em que se maximizam os benefícios da internet para cada criança”, completou.
Outro estudo revela essa realidade também no Brasil. O país está entre os dez do mundo com o maior número de pessoas desconectadas, de acordo com o trabalho encomendado à unidade de inteligência da revista britânica “The Economist” pela Internet.org – iniciativa do Facebook para levar conexão a populações de baixa renda e áreas isoladas. No total, 70,5 milhões de brasileiros não possuem acesso à internet. No mundo, a juventude africana é a menos conectada, com cerca de três a cada cinco jovens offline, em comparação com apenas um em cada 25 na Europa. Outros países com maior população offline são Indonésia, Nigéria e México.
“Hoje o problema não é usar a internet em excesso. É não usá-la. Pois, não usando, os jovens ficam, de certa forma, à margem da sociedade e das informações”, diz a psicóloga Vanina Dias.
Oportunidades. Para o Unicef, essas tecnologias trazem oportunidades de aprendizagem e educação para crianças, especialmente em regiões remotas e durante crises humanitárias. As tecnologias digitais também permitem que as crianças acessem informações sobre questões que afetam suas comunidades e poderiam ajudar a resolvê-las.
É por meio da poesia que a rapper e produtora cultural MC Martina, 19, também tenta mudar ou pelo menos dar visibilidade a sua realidade. De uma família de seis irmãos, a moradora do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, deseja cursar faculdade de gestão pública, mas não tem acesso à internet em sua residência. Além disso, um dia antes de dar entrevista a O TEMPO, ela teve seu celular furtado.
“É na internet que tento divulgar meu trabalho, ajudar a mostrar a história de onde eu moro de um jeito diferente. Com ela (internet), minha poesia chega a lugares antes de mim, e as pessoas a compartilham em outros Estados. Ajuda muito. Sem internet, acabo perdendo oportunidades, mas acabamos criando algumas táticas. Por exemplo, alguns amigos me ajudam a administrar minha página no Facebook e, quando não consigo acessar, eles falam comigo, e conseguimos evitar isso”, diz MC Martina.
Recomendações do Unicef
O relatório lista “ações prioritárias e recomendações práticas”:
1. Igualdade: Forneça a todas as crianças acessibilidade a recursos online de alta qualidade.
2. Segurança: Proteja as crianças de danos online, incluindo abuso, exploração, tráfico, ciberbullying e exposição a materiais inadequados.
3. Garantia: Proteja a privacidade e a identidades das crianças online.
4. Educação: Ensine alfabetização digital para manter as crianças informadas, envolvidas e seguras online.
5. Investimento: Aproveite o poder do setor privado para promover padrões e práticas éticas que protejam e beneficiem crianças online.
6. Foco: Coloque as crianças no centro da política digital.
FOTO: Nadja Kouchi/divulgação |
MC Martina, 19, moradora do Complexo do Alemão, no Rio, não tem internet e conta com a ajuda de amigos conectados |
Linguagem é barreira para acesso universal
Apesar da rápida disseminação do acesso a experiências digitais em todo o mundo, ainda existem grandes lacunas no acesso das crianças, entre elas a linguagem. Segundo o relatório do Unicef, as divisões digitais vão além da questão do acesso. De acordo com o órgão, aproximadamente 56% de todos os sites estão em inglês, e muitas crianças não conseguem encontrar conteúdo que entendam ou que seja culturalmente relevante.
“Crianças que dependem de smartphones, em vez de computadores, podem receber apenas uma segunda melhor experiência online, e aqueles que não possuem habilidades digitais ou falam línguas minoritárias geralmente não conseguem encontrar conteúdo relevante online. As divisões digitais também refletem as brechas econômicas prevalecentes, ampliando as vantagens de crianças de origens mais ricas, e não conseguem oferecer oportunidades para as crianças mais pobres e mais desfavorecidas”, aponta.
A psicanalista Alice Oliveira Rezende lembra que autores-referência na psicologia social e na sociologia, como Pierre Bourdieu, Félix Guattari e Zygmunt Bauman, já falavam da ação dos meios de comunicação em não promover o enfraquecimento das diferenças econômicas e barreiras de classe, mas, pelo contrário, reforçar os sistemas de alienação e pressão – o que também se aplica às redes sociais.
Ela cita um trecho do artigo “Os adolescentes na rede: Uma reflexão sobre as comunidades virtuais”, de 2012. “Enquanto alguns podem mover-se para fora da localidade quando quiserem, outros observam, impotentes, a única localidade que habitam movendo-se sob seus pés”, segundo Bauman.