Política

Nova lei permite internação forçada de usuários de drogas

Documento sancionado por Bolsonaro nesta quinta-feira (6) diz que medida será possível com laudo médico

Qui, 06/06/19 - 20h52
Polêmica. Dependente químico pode, segundo a lei já em vigor, ser internado involuntariamente | Foto: Alex de Jesus/O Tempo - 20.11.2014

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São Paulo. O presidente Jair Bolsonaro (PSL) sancionou nesta quinta-feira (6) a lei que altera a política nacional de drogas e prevê, entre outras ações, a internação involuntária de usuários a pedido de familiares ou responsáveis legais, em medida que reforça a abstinência como ferramenta de tratamento da dependência química. A lei entrou em vigor nesta quinta-feira com a publicação no “Diário Oficial da União” (“DOU”).

A lei sancionada tem como origem um projeto de 2013 de autoria do ex-deputado federal e hoje ministro da Cidadania, Osmar Terra. O documento traz a possibilidade de duas formas de internação: voluntária, em que o dependente consente e que exige uma declaração escrita do usuário confirmando a opção pelo tratamento; e involuntária, autorizada após formalização da decisão por um médico responsável.

Nesse último caso, se o usuário não tiver familiar ou responsável legal, ainda assim pode ter a internação autorizada por servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), com exceção de servidores da área de segurança pública.

A internação compulsória é condicionada a motivos que justifiquem a medida, de acordo com o texto, que não especifica critérios para isso. O usuário só poderá ficar internado pelo prazo máximo de 90 dias, e o término deve ser determinado pelo médico responsável.

Familiares ou responsáveis poderão pedir o fim da internação do tratamento a qualquer momento – na Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001, a família poderia determinar o fim da internação, sem pedir a um médico.

As internações e altas deverão ser informadas em, no máximo, 72 horas ao Ministério Público, à Defensoria Pública e a outros órgãos de fiscalização.

Outra forma de atendimento prevista na norma é a das comunidades terapêuticas, que já recebem usuários, mas não se caracterizam como unidades de saúde, e sim estabelecimentos filantrópicos.

Atualmente, existem mais de 1.800 comunidades terapêuticas espalhadas pelo país. Relatório de 2017 da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas encontrou violações de direitos humanos em todas as 28 unidades visitadas, como punições físicas, retenção de documentos e trabalhos forçados, além da falta de equipes mínimas essenciais ao tratamento.

A norma não estabelece critérios objetivos para diferenciar usuários de traficantes. Segundo os próprios senadores, a aprovação da nova legislação foi uma forma de pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento que pode descriminalizar o uso de drogas no país – medida já apoiada por três ministros.

A lei trata ainda da incineração de drogas, que deverão ser destruídas no máximo 30 dias após a apreensão. Já bens apreendidos poderão ser vendidos, e o dinheiro arrecadado deverá ser depositado em conta judicial remunerada.

Psicólogo português critica mudança

São Paulo. Centralizar uma política de drogas na abstinência dos usuários é negar as evidências científicas que apontam para a falência desse modelo, diz o psicólogo José Queiroz, diretor executivo da Agência Piaget para o Desenvolvimento (Apdes), entidade portuguesa que há quase 20 anos trabalha com outra fórmula: a redução de danos.

“É um círculo vicioso: consumo, adição, dependência, abstinência, recaída. Quando a abstinência se impõe como modelo único, as taxas de recaída são muito altas, e as de sucesso, muito baixas”, afirma Queiroz. Portugal virou a chave no início dos anos 2000. Após longos debates com a sociedade civil e no Parlamento, descriminalizou o consumo de drogas até certo limite e passou a olhar para o usuário pelo viés da saúde, não da segurança pública.

Viu despencar o consumo de heroína e de cocaína e a incidência do HIV. O número de presos por causa de substâncias ilícitas caiu de 75% para 45% – a polícia passou a se concentrar no grande tráfico.

“Vimos que há muitos tipos de uso, perfis e contextos diversos. Então, a resposta do poder público precisa ser complexa. Quanto mais alternativas, a mais gente conseguimos chegar”, diz o psicólogo. “Olhamos para eles como sujeitos políticos, que devem defender os próprios direitos e participar da discussão pública sobre as políticas de drogas. É essa a voz que importa”, afirma o psicólogo.

Psiquiatra defende uso como alternativa

A psiquiatra Carla Bicca, vice-coordenadora da Comissão de Dependência Química da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), reconhece que há muitos críticos da internação involuntária, mas ela defende a medida. “Muitas vezes, o paciente precisa desse auxílio (internação)”, diz. Antes, explica, era necessário todo um procedimento legal, inacessível aos pacientes carentes e tão demorado que os danos causados pelo usuário a ele mesmo, ou à comunidade, eram irreversíveis.

Carla ressalta, no entanto, que a internação involuntária só deve ser usada após múltiplas tentativas na rede de assistência a dependentes químicos. Ressalta, também, que o laudo exigido precisa ser dado por profissional da saúde com experiência no atendimento a dependentes químicos.

“Sabemos que algumas pessoas podem usar a lei de um jeito ruim, por isso é importante fiscalizarmos e usarmos seu texto como meta”, diz. A médica vê como ponto positivo o máximo de 90 dias de internação. Segundo ela, o cérebro precisa de, no mínimo, um mês para deixar de ser afetado pela droga. (Carla Chein)

 

“Existe risco maior para quem sofre algum tipo de estigma ou é mais vulnerável em questões sociais (como mulheres e LGBTs). Os órgãos de controle podem não conseguir fiscalizar se a internação é adequada.”

Rodrigo Fonseca

Instituto de Psiquiatria da USP

 

“Em algumas situações, ela (a internação) é imprescindível e importante. Mas a internação involuntária, de forma arbitrária e sem nenhuma intermediação com o sujeito, a família e a equipe, só vai levar a mais sofrimento.”

Paulo Aguiar

Conselho Federal de Psicologia

 

“A abstinência total é excelente, mas existe uma parcela da população que não se beneficia delas. Estudos mostram que, se você usar estratégias de redução de danos, a médio prazo, a taxa de abstinência é o dobro.”

Dartiu Xavier da Silveira

Psiquiatra e prof. da Unifesp

 

“A nova lei que começa a valer a partir de hoje (quinta-feira) tem alguns pontos importantes que facilitam o acesso das pessoas ao tratamento, apesar de muitas pessoas criticarem o caráter compulsório.”

Carla Bicca

Associação Bras. de Psiquiatria

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