No prefácio de seu segundo livro, “Sula”, lançado em 1973, a escritora norte-americana Toni Morrison tece comentários sobre como críticos e leitores de autores negros sempre buscavam encaixar a eles e às suas histórias em lugares bem demarcados. A vencedora do Nobel de Literatura de 1993 cita que não era incomum, no meio cultural, a ideia de que ficção política não é arte – e que esse entendimento costumava se refletir no apagamento da obra de alguns grupos específicos. “Essa crença, que parecia não ter existido para Chaucer, Dante, Catulo, Sófocles, Shakespeare ou Dickens, continua conosco e, em 1969, era um fardo descomunal para os escritores afro-americanos”, anota Morrison, que prossegue: “Seja quando não tinham interesse nenhum por política, ou no caso de terem tendências, consciência ou agressividade no campo político, a raça deles ou a raça de seus personagens os condenava a uma análise ‘puramente política’ de sua relevância”.
Hoje, ao ler o desabafo da escritora, é possível perceber nuances que indicam como estava se construindo, já naquele período, um conceito que passou a ser muito recorrente, sobretudo em debates promovidos nas redes sociais: o de lugar de fala. Ainda que o termo ainda não existisse de forma tão disseminada, elementos ligados a essa formulação teórica são notados nas reivindicações de Morrison. Ela denuncia, por exemplo, como o recorte racial era considerado quando se tratava de autores negros, como se, necessariamente, a literatura produzida por eles tivesse viés racial. Por outro lado, quando se tratava de autores brancos, o foco passava a ser apenas o conteúdo, como se esses escritores falassem de um lugar neutro. Portanto, fica evidente como, para alguns sujeitos, sempre importou o ponto de vista a partir do qual se fala, enquanto, para outros, o local de partida pode ser simplesmente ignorado.
Com esse movimento, Morrison põe em questão a ideia de universalidade do conhecimento, que é também questionada a partir do conceito de lugar de fala. “Estamos falando de uma formulação que pode ser compreendida como a posição a partir da qual a pessoa fala. A ideia é a de que todas as pessoas falam de um lugar social, e não de um lugar vago e abstrato. Logo, quando nos posicionamos frente ao mundo, fazemos isso a partir do lugar social que ocupamos”, explica a doutora em filosofia política Maria Fernanda Salcedo Repolês, inteirando que, ao que tudo indica, a teoria começou a ser construída, na década de 60, por mulheres do feminismo negro norte-americano. “O esforço delas é para explicitar que o conhecimento é sempre situado e sempre parte de certa perspectiva social”, diz. “Então, esse termo foi cunhado para mostrar que o ato de reivindicar um suposto lugar universal de fala – que não por acaso ecoa uma voz masculina, branca e europeia – está escondendo uma série de fatores”, situa a professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Pelo direito de falar e de ser ouvido
Outro tensionamento proposto pelo debate sobre o lugar de fala perpassa a invisibilização de grupos historicamente oprimidos, cujas demandas precisavam ser mediadas por sujeitos em posição de poder, como observa a educadora e escritora Luana Tolentino. “Essa discussão não é, ao contrário do que muitos pensam, sobre um lugar individual. Não se trata disso. Quando lembramos que todos falamos de determinado lugar, estamos também reivindicando o direito de vozes silenciadas tomarem a palavra e serem ouvidas. E essas vozes, quando ocupam um lugar de fala, são coletivas e ecoam, sobretudo, de grupos colocados em lugares de menor prestígio social, que passam a falar por si próprios”, destaca.
Nesse sentido, é curioso notar que a simples necessidade de as demandas de alguns grupos serem mediadas por essa voz que falava de um pretenso lugar de neutralidade denuncia, por si, violências estruturais da sociedade. Isto é: se para pautas do movimento negro serem ouvidas for preciso que uma pessoa branca fale sobre elas, temos aí um exemplo de viés social racista. Contudo, isso não significa que temas relacionados a esses grupos só possam ser debatidos por eles próprios.
“Noto que o lugar de fala, quando descontextualizado, trouxe consigo uma desculpa muito confortável para a omissão ou para a interdição do diálogo”, critica Luana. “Dizer que todos temos um lugar de fala e que precisamos reconhecê-lo não é a mesma coisa que dizer que só determinado segmento pode falar sobre si”, completa, trazendo um exemplo um tanto comum para ilustrar esse ponto do debate: “Eu, mulher negra, falo do racismo a partir da minha experiência de vida, que diz sobre aspectos do grupo social a que pertenço. Mas nada impede que um sujeito branco também fale a respeito do racismo, que entre nesse debate e abrace essa causa. O que é esperado é que ele tenha o entendimento de que nós, mulheres negras, enquanto grupo, também precisamos ser ouvidas e reconhecidas”.
O lugar da inclusão e da polifonia
“O lugar de fala não é o da interdição nem o do silenciamento, é o lugar da inclusão de vozes outras para também serem ouvidas. É o lugar da polifonia”, resume a educadora Luana Tolentino.
A definição está em sintonia com o entendimento de Maria Fernanda Salcedo Repolês sobre o tema. “Os movimentos sociais no Brasil, como também em diversos outros países, começaram a usar muito esse termo para falar do silenciamento constante. Há poucos anos, faziam-se congressos em que só homens brancos eram convidados a falar. E a gente tratava isso com naturalidade. Começamos a questionar: por que não temos o olhar de uma mulher negra, o que as cientistas têm a dizer? Então, descobrimos que elas colocavam questões novas em jogo, traziam novas problemáticas, que antes não apareciam”, avalia.
A doutora em filosofia política também defende que o conceito traz mais ganhos justamente quando é mais inclusivo. “Nas redes sociais, é comum ver pessoas dizendo que um homem, por exemplo, não pode nem tem legitimidade para falar sobre feminismo. Ou que é preciso ser negro para pautar o racismo ou ser Pessoa com Deficiência (PcD) para falar de capacitismo. Temos aí alguns problemas”, situa.
De um lado, ela pondera que dialogar com homens sobre o feminismo, por exemplo, “é importante para que eles pensem sobre sua própria condição e constituição em uma sociedade patriarcal”, e, igualmente, “o sujeito branco deve falar da negritude, porque, então, ele vai refletir também sobre a sua branquitude frente a essa negritude”. Afinal, “para o fim dessas estruturas de opressão, precisamos que quem está no poder hoje também fale sobre esses temas, até para que eles não fiquem entendidos como algo secundário”, reforça.
Outra problemática diz respeito ao risco de que as vozes que sempre foram colocadas à margem na produção do conhecimento e do poder sejam relegadas a falar apenas de nichos e para nichos. Essa situação foi recentemente satirizada pelo canal Porta dos Fundos. No vídeo, Fábio Porchat interpreta um homem que é entrevistado sobre assuntos diversos, como literatura, aquecimento global e até o sistema digestivo das amebas. Entretanto, ele se esquiva ao ser questionado sobre temas relacionados a grupos minorizados.
“Se a discussão se torna apenas sobre quem pode falar sobre algum assunto, se se torna uma reivindicação de que só mulheres podem falar de feminismo, de que só negros podem falar de racismo, estaremos esvaziando o sentido desse questionamento do lugar a partir do qual se fala, e, com isso, continuará sendo uma única voz a tratar de todos outros temas”, assevera a estudiosa.
Por fim, há o perigo de se usar o lugar de fala como um argumento que se encerra em si, de forma que, ao localizar o interlocutor em certo grupo social, passa-se a desqualificá-lo, sem discutir o teor do que está sendo dito e ignorando possíveis contribuições e tensionamentos.
Popularização. Luana aponta a filósofa e escritora Djamila Ribeiro, que tem um livro sobre o tema, como fundamental contribuidora para a popularização do debate sobre o conceito de lugar de fala no Brasil. Ela ressalta que também foi a fundamental para que o tema ganhasse cada vez mais alcancer a maior presença de grupos minorizados, sobretudo pessoas negras, na educação superior. Por fim, crê que as redes sociais ampliaram essas discussões, lembrando que a formulação surge associada ao feminismo negro, mas que logo passa a ser adotada por outros diversos movimentos sociais.
Reação. A educadora comenta como “o questionamento e deslocamento do lugar hegemônico causam incômodo, sobretudo nesse grupo que sempre foi visto como universal, como detentor da razão”, diz. Surge daí uma reação, muito pautada pela ideia de conflito.
Mas é preciso se deter com cuidado sobre esse ponto, “porque pode parecer que eu, que sou mulher e negra, é que estou causando tumulto simplesmente por reivindicar o direito a um lugar de falar”, aponta Luana. “Então, precisamos localizar quem é que está incomodado com o fato e agora concorrer com essas muitas vozes. Logo, entenderemos que estamos falando sobre essa parcela da população que está acostumada a falar sozinha”, finaliza.