Estética e beleza

Originado de termo francês, ensaio boudoir privilegia autoestima das mulheres

Encontrar a sensualidade em si mesma propicia reconexão com libido e intimidade, afirma fotógrafa

Por Raphael Vidigal Aroeira
Publicado em 12 de abril de 2024 | 06:00
 
 
Originado de termo francês, ensaio boudoir privilegia autoestima e segurança das mulheres e propicia reconexão com a sua própria libido e intimidade Foto: Karen Ramos/Florescer Retratos/Divulgação

Solicitada a realizar um ensaio, a fotógrafa Karen Ramos resistiu à ideia proposta. Aos poucos, ela convenceu a modelo de que era mais interessante presentear a si mesma do que ao marido. “Ela estava tão apaixonada por si e focada em seu bem estar, que nem se lembrou mais de compartilhar as fotos com ele. Aquele se tornou o segredinho dela, para sua própria libido”, conta Karen, que ressalta outro fator importante. 

“Quando você faz as fotos já pensando em mostrar para alguém ou postar nas redes sociais, ao olhar para si nas imagens você acaba projetando a expectativa do outro sobre seu corpo. As mulheres descobriram que não precisam realizar um ensaio apenas para presentear uma terceira pessoa, e agora o fazem para si mesmas, como um processo de reconexão com seus corpos”, completa. 

Essa é a essência do chamado ensaio “boudoir”, termo de origem francesa, que, no século XVIII, designava um espaço de intimidade da casa restrito às mulheres, onde elas se trocavam após o banho, recebiam visitas para conversas particulares, ou, simplesmente, ficavam sozinhas.

A partir de 1920, a expressão foi importada para a fotografia pelo norte-americano Albert Arthur Allen (1886-1962), que passou a reproduzir as características de um boudoir no estúdio, a fim de “retratar mulheres geralmente usando lingerie, camisolas, acessórios e joias, em poses sensuais ou de nu artístico”, pontua Karen. 

Ali, no entanto, ainda imperava a perspectiva do olhar masculino por trás das lentes. “Trazendo para um tempo mais recente, o termo ‘ensaio boudoir’ continuou sendo utilizado para se referir aos ensaios sensuais, principalmente aqueles realizados pelas noivas antes do casamento, com o objetivo de presentearem seus futuros maridos na lua de mel”, observa a entrevistada.

Agora, porém, o cenário é outro, e mesmo a referência caiu em desuso. “O termo ‘ensaio boudoir’ não é tão utilizado, tendo sido substituído pelo termo mais generalista ‘ensaio sensual’, que foi ampliado para atender ao estilo e à personalidade de cada mulher que busca por uma experiência fotográfica com o intuito de se reconectar com a sua beleza e sensualidade”, afiança Karen. 

Do medo ao amor próprio

Na opinião de Karen, “em uma sociedade que bombardeia as mulheres com padrões de beleza inalcançáveis, elas buscam no ensaio sensual uma oportunidade de enxergarem beleza e sensualidade em si mesmas”. “A indústria da beleza é cruel com as mulheres, fazendo com que elas sintam que precisam sempre mudar uma coisinha aqui ou ali para serem bonitas, adequadas, aceitas e, consequentemente, amadas”, afirma. Nesse processo, ela considera fundamental compreender o peso que a sociedade imprime sobre possíveis valores e escolhas. 

“Quando as mulheres percebem que a insatisfação que sentem com seus corpos vem de uma socialização estrutural, descobrem que é impossível alcançar os padrões impostos, até mesmo porque eles mudam frequentemente. É neste momento que elas passam a buscar formas de se sentirem bem na própria pele, de olhar para seus corpos com mais aceitação, amor, e a celebrar suas jornadas”, sustenta. 

Logo, chegam à conclusão de que “celulites, estrias, gordura localizada, manchas e rugas estão presentes nos corpos de todas as mulheres e isso não as torna feias”. Então, a dedicação para tentar alcançar padrões impossíveis passa a ser direcionada “para outras áreas da vida, que são muito mais gratificantes”, avalia a fotógrafa, que se vale de sua própria trajetória. 

“Eu comecei a fotografar para me reconectar com minha autoestima. E foi através das experiências com as mulheres que fotografei que eu passei a questionar com mais afinco os padrões de beleza impostos e como a socialização feminina impacta em nossa autoestima”, declara.

Testemunhando “as experiências positivas de mulheres que se descobriam lindas e sensuais em suas individualidades, sem precisarem reproduzir o que a sociedade prega como belo e sensual”, Karen tomou coragem para pedir exoneração do serviço público, onde era concursada há 12 anos, e trabalhar exclusivamente com ensaios fotográficos femininos. “Foi libertador para mim também”. 

Uma nova sensualidade

“Todas as mulheres que me buscam têm o desejo em comum de aprender a enxergar o que é essa tal beleza e sensualidade em seus corpos. O mais fascinante da minha profissão é ver como elas desabrocham após o ensaio. Sempre as acompanho nas redes sociais e percebo o quanto ficam mais seguras de si, passam a tirar e postar mais selfies, tomam coragem para sair de um trabalho ou de um relacionamento em que não estão satisfeitas, conseguem colocar no mundo um projeto pessoal que estava engavetado há muito tempo”, enumera Karen. 

Desde que decidiu se entregar de corpo e alma ao ofício, Karen retratou “mulheres que foram abusadas, que lutavam contra o câncer, que estavam sobrecarregadas sendo as únicas cuidadoras de suas famílias e não conseguiam tempo para cuidar de si mesmas, mulheres que tiveram a autoestima minada por um relacionamento abusivo”. Um caso específico, no entanto, a marcou definitivamente.

“Retratei várias mulheres que eram traumatizadas com seus seios, mas uma, em especial, me impactou demais, pois não conseguia olhar para os próprios seios no espelho, muito menos tocá-los. Ela sofreu abuso e bullying na escola e dentro da sua própria família. Por causa disso, queria escondê-los o tempo todo durante as fotos”, relata. 

Conduzindo o ensaio “com muito respeito” aos traumas da modelo, direcionando para que ela “se soltasse aos poucos”, Karen conseguiu, ao final, retratá-la sem esconder os seios. “E se tornaram as suas fotos prediletas, pelo significado que possuem”, celebra.

“Para mim, é sempre muito marcante quando elas contam que nunca enxergaram sensualidade em si, ou que nunca gostaram dos seus sorrisos ou outras partes de seus corpos e, durante a experiência do ensaio, conseguem ressignificar e fazer as pazes com essas insatisfações. Elas saem do estúdio radiantes e, neste momento, eu sei que houve uma transformação que vai impactar positivamente a forma como elas seguirão suas vidas dali pra frente”. 

“Uma mulher sensual é uma mulher segura de si”

Um espaço seguro, de conforto, respeito e acolhimento. A fotógrafa Karen Ramos sustenta que essas características são indispensáveis para o ensaio sensual. “Uma mulher sensual é uma mulher segura de si, que ocupa os espaços que deseja com confiança. Nas fotos, essa confiança é evidente pela postura que elas assumem ao se sentirem confortáveis e acolhidas em sua naturalidade”, detecta a entrevistada. 

Karen enfatiza que um ensaio baseado em apenas reproduzir poses historicamente vistas como sensuais “pode gerar um efeito contrário, e encaixotar ainda mais as mulheres, ao invés de libertá-las”. Nesse sentido, o fato de haver outra mulher segurando a câmera faz toda a diferença, pois Karen compartilha com elas as mesmas angústias e descobrimentos.

“Já realizei ensaios com mulheres com 60 anos ou mais, e estavam no auge da autoconfiança e liberdade. Apesar da maturidade que as levava a não se importarem com a opinião alheia, o que tende a ser mais comum entre as mulheres mais jovens, elas traziam inseguranças muito específicas da fase que vivem”. 

Lidando com desafios como a mudança hormonal, os sinais do tempo na pele, o etarismo e a sobrecarga de, muitas vezes, serem as únicas cuidadoras de seu pais, filhos, netos e companheiros, essas mulheres mais velhas celebravam a vida através do ensaio sensual, “por entenderem que envelhecer com saúde é um grande privilégio”. “Ou como ritual de passagem de um momento difícil, como um divórcio, ou para se reconectarem consigo mesmas após meses cuidando de um parente doente. E, após as fotos, elas se sentem nutridas para seguir em frente”, finaliza Karen.