Considerado o pai da medicina ocidental e o mais famoso médico da Grécia Antiga, Hipócrates já entendia mente e corpo como uma única realidade. Com o passar do tempo, no entanto, ganhou força a compreensão do filósofo francês René Descartes (1569-1650), de que esses dois âmbitos representavam uma dualidade. Nesse sentido, o corpo estaria localizado no espaço e no tempo e sujeito às leis da física, enquanto a mente, idêntica à alma, seria o eu “real”.

Desde então, essa noção também passou a ser revista, retornando ao pensamento de Hipócrates de que tudo seria uma coisa só. Tanto é que, fundada em 7 de abril de 1948, a Organização Mundial da Saúde (OMS), agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU), trouxe um conceito que pretendia ampliar a visão a respeito do que seria “ser ou estar saudável”. Na ocasião, foi definido que “saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de doença”.

Mas, enquanto neste domingo (7) se celebra o 72º Dia Mundial da Saúde, esse entendimento parece não ter sido muito bem assimilado em nossa sociedade. A ponto de a saúde mental ainda não ser levada a sério da forma como deveria, embora a depressão seja a principal causa de problemas de saúde e invalidez no mundo, segundo dados da própria OMS.

Doenças sistêmicas

São mais de 300 milhões de pessoas convivendo com a patologia no planeta, 18% a mais do que no ano de 2005, mas alguns fatores, como a estigmatização desse tipo de problema e o despreparo dos sistemas de saúde para lidar com ele, fazem com que muitos sejam privados do tratamento necessário para terem uma vida saudável e produtiva.

As doenças mentais precisam ser entendidas como doenças sistêmicas, ou seja, do corpo inteiro, como adverte o presidente da Associação Mineira de Psiquiatria e professor titular da UFMG, Humberto Corrêa. “Temos o hábito de separar corpo e mente, mas não existe essa divisão. Hoje sabemos que as doenças mentais repercutem no corpo, e vice-versa. A depressão, por exemplo, afeta o sistema imune, altera a ocitocina e outros hormônios, e tudo isso interfere diretamente no funcionamento do organismo. Além disso, o adoecimento mental leva a pessoa a ter menos predisposição para se cuidar, o que faz com que não pratique exercícios físicos, tenha comportamento de risco para álcool e outras drogas ou mesmo não siga corretamente o tratamento em caso de doenças clínicas”, explica.

Desequilíbrio pode gerar vários outros problemas

Embora sempre tenha sido uma pessoa proativa, que realizava muitas atividades, a designer Clara Tannure, 24, não notou que tinha um problema de saúde quando o ânimo e a motivação desapareceram. Foram manchas, bolinhas e coceira na pele a pista que levaram à descoberta de um quadro depressivo. 

“Comecei a não dar conta mais de tudo o que tinha pra fazer, a me sentir muito cansada. Mas só descobri por causa de uma psoríase. Na verdade, a dermatologista foi a primeira pessoa a me receitar antidepressivo, que eu passei a tomar junto com o remédio da pele. Foi aí que eu percebi o quanto precisava, porque voltei a ficar esperta, animada e a conseguir fazer as coisas”, conta a jovem, que está em tratamento há cerca de um ano.

A psoríase é uma dermatose autoimune comumente desencadeada pelo estresse. Além dela, tantas outras condições estão associadas a quadros de desequilíbrio da saúde mental. A depressão, por exemplo, por afetar o apetite, pode provocar perda ou ganho de peso; por exacerbar sentimentos como isolamento e estresse, pode piorar casos de doenças crônicas; por atrapalhar o sono, pode provocar exaustão e outros problemas como pressão alta, diabetes e outras questões relacionadas ao peso. 

Um estudo da King’s College de Londres publicado em 2017 demonstrou que pessoas com doenças mentais graves como esquizofrenia, transtorno bipolar e depressão intensa têm 53% mais chances de terem doenças cardiovasculares do que quem não tem. Foram analisados dados de 3,2 milhões de pessoas que convivem com doenças mentais severas. Foi constatado também que o risco de morte devido a doenças cardíacas entre eles era 85% maior do que o das pessoas da mesma idade na população geral.

Além dessa pesquisa, existem outras evidências da relação, como pondera a psiquiatra e professora do departamento de saúde mental da UFMG Maila de Castro. “Existe uma relação estreita e direcional. Quem tem infarto do miocárdio e um quadro de depressão tem mais risco de morrer do que quem não tem. Da mesma forma, pessoas com problemas cardiovasculares têm maior chance de adoecimento mental”, explica.

Por consequência

Mais do que isso, o desequilíbrio mental pode fazer com que a pessoa se descuide da saúde. Foi mais ou menos o que aconteceu com a publicitária Patricia Soares, 27. “Por conta de uma pressão grande no trabalho, acabei desenvolvendo sintomas de depressão e ansiedade. Eu trabalhava numa agência e mal tinha tempo pra me alimentar, por conta da cobrança excessiva, e vivia à base de bebida energética. Com isso, acabei prejudicando meu estômago”, lembra.

Por conta disso, a falta de reconhecimento da seriedade da doença se torna um complicador. “Os pacientes muitas vezes são estigmatizados, como se tivessem, de alguma maneira, escolhido ter a doença, e isso faz com que muitas vezes não consigam aderir ao tratamento. E a não adesão só piora o prognóstico”, afirma a psiquiatra Maila de Castro. “Por isso, na dúvida, é melhor procurar um médico o quanto antes se houver tristeza persistente, muita ansiedade, sintomas psicóticos. O importante é não ter medo nem preconceito. O psiquiatra é um médico como qualquer outro, e a pessoa com problema de saúde mental tem potencial para ser o que quiser. Ela precisa trabalhar suas diferenças, mas há potenciais a serem explorados”, finaliza.

Um estudo da Universidade de Oxford, no Reino Unido, demonstrou que pessoas com esquizofrenia têm a expectativa de vida reduzida de dez a 20 anos. Associada a vários desfechos adversos que levam ao aumento das taxas de mortalidade, a doença, em 60% dos casos, leva a óbito por causas naturais, tais como doenças cardiovasculares, respiratórias, doenças infecciosas, diabetes e câncer. Nos outros 40%, a morte está associada, principalmente, a suicídio, acidente e abuso de álcool ou drogas. 

O risco cardiovascular nos esquizofrênicos é tema de pesquisa da biomédica mestre em neurociências Ingrid Caroline. “As doenças cardiovasculares são uma das principais causas de mortalidade precoce nesses pacientes, sendo que mais de dois terços dos pacientes com esquizofrenia morrem devido a doenças cardiovasculares em comparação com metade da população em geral”, explica.
De acordo com a biomédica, alta mortalidade cardiovascular nesse grupo de pacientes pode ser associada à alta prevalência de distúrbios metabólicos e fatores de risco como obesidade, dislipidemia (aumento anormal da taxa de lipídios), resistência à insulina, diabetes e hipertensão arterial.

A solução para esse problema passa fundamentalmente por duas vias: quebra do estigma e acesso à assistência. “O fato de serem estigmatizados pela sociedade afeta essas pessoas, reduzindo sua autoestima e tornando-os menos interessados em cuidar de si mesmos, negligenciando os cuidados necessários. Além disso, graças à dificuldade de acesso à assistência à saúde básica, eles acabam vivendo em condições insalubres e expostos a fatores de risco a doenças, como as cardiovasculares”, afirma.

Por conta disso, é preciso investir em ações de promoção da saúde mental. “A discussões sobre a sua importância devem envolver organizações de saúde, escolas, o núcleo familiar e a sociedade como um todo”, conclui. 

Controvérsias pautam associação com a depressão

Pesquisadores da University College de Londres, da Universidade de Edimburgo e da Universidade de Sydney descobriram, em 2014, uma ligação entre altos níveis de tormento mental e o aumento do risco de morte por câncer. Por outro lado, um recente estudo da Universidade da Califórnia concluiu justamente o contrário. “Precisamos parar de atribuir diagnósticos de câncer a histórias de estresse, depressão e ansiedade”, disse Aoife O’Donovan, um dos psiquiatras envolvidos com a pesquisa. 

De um jeito ou de outro, o Dia Mundial de Combate ao Câncer, celebrado nesta segunda (8), é uma oportunidade para se refletir sobre a forma como os problemas de saúde mental afetam pacientes com a doença e vice-versa. 

Relação

“O paciente oncológico tem mais depressão do que a população em geral. O câncer leva a uma adaptação psíquica que tem a ver com a nossa mortalidade. Também existe um aumento de marcadores inflamatórios que pode relacionar uma coisa à outra”, explica a psiquiatra e professora do Departamento de Saúde Mental da UFMG Maila de Castro. “O paciente com câncer tem perda de peso, passa por situações que o deixam vulnerável. Se for um quadro que não tem proposta curativa ou se ficarem muito tempo internados em hospital, têm, sim, uma propensão maior à depressão”, explica.

Da mesma forma, ainda que a depressão não possa ser apontada como uma causa direta de câncer, pessoas com adoecimento mental podem ter comportamentos que favoreçam o surgimento da doença, é o que pondera o presidente da Associação Mineira de Psiquiatria e professor titular da UFMG, Humberto Corrêa. “Não dá pra dizer que, em si, é associada ao câncer, mas a doença de ordem mental pode levar ao uso e abuso de álcool, drogas, tabaco. Pode tornar as pessoas sedentárias e provocar alterações de peso. Tudo isso coloca o paciente em maior risco”, afirma.