FABRÍCIO CARPINEJAR

A bênção infindável

Não tem essa de não ter mais idade para sair. Continuam carregando os seus idosos a bares e shows.

Por Da Redação
Publicado em 01 de setembro de 2019 | 03:00
 
 
Acir Galvão

Os mineiros cuidam dos seus pais.

Nunca abandonam os velhos a sós com as lembranças.

Levam os pais para jantar, para festas, para praças. Não se envergonham da cumplicidade do braço dado em público e do beijo na cabeça grisalha.

Não tem essa de não ter mais idade para sair. Continuam carregando os seus idosos a bares e shows. Enquanto há vida, há esperança.

Os pais não atrapalham os romances, as amizades, a rotina do trabalho.

Não é porque os mineiros se tornaram adultos que deixaram de ser filhos.

Cedem espaço do futuro à urgência da memória.

Andam a tiracolo com os seus progenitores, à luz do dia, envaidecidos de ajudar.

São filhos dedicados do trotear. Ficam perto deles até a morte. Até depois da morte.

Os pais morrem dentro do abraço dos filhos. Falando por suspiros.

No fim de suas vidas, as crias tentam traduzir as últimas palavras de seus pais para os outros. Mostram-se tradutores da transcendência.

Mineiro não chora na despedida, chora depois, devagar, ao longo dos anos seguintes ao luto, para matar a sede de saudade com as lágrimas.

Estou morando em Belo Horizonte há dois anos. E vejo, com emoção, que todo mineiro coleciona algo de seus pais. Um móvel. Um objeto. Uma relíquia. Um quadro. Um livro.

Qualquer residência tem um cantinho para o brechó familiar, para o museu do amor.

Lembrar é rezar. Mantém-se um lugarzinho entre os aposentos, que serve de capela para prestar o sinal da cruz a um doce falecido.

Não é dependência, não é submissão, mas reconhecimento do imenso esforço que é criar e educar alguém.

Não se joga fora o radinho de pilha usado nas arquibancadas do estádio, não se joga fora o relógio parado que cobria o pulso de seu protetor, não se joga fora a porcelana pintada dos pratos, não se joga fora a cadeira da varanda.

Se combina ou não combina com a decoração da casa é de menos, o que importa é que combine com a alma da família.

Mineiro guarda tudo o que recebeu de herança. Uma caneta que seja. Um reles porta-copos.

Certo que haverá resquícios da presença paterna e materna em seu ambiente doméstico.

Orgulham-se de renovar a validade do sobrenome com algum pertence.

Já testemunhei amigos com mala de seu pai debaixo da cama, com a manta tricotada da mãe vestindo a poltrona. São bênçãos que resistiram ao tempo, para contar a história de onde vieram.

Dificilmente o mineiro se livra da máquina de costura, do lustre, da mesa de madeira de demolição da sala. Não existe leilão que pague o preço da ternura.

Tanto que, aqui em Minas, a sua cidade não é aquela em que você viveu, é onde estão os seus mortos.

A cidade natal é o berço da família, além de uma escolha individual. Ainda que tenha trabalhado toda a trajetória na capital, pede-se para ser enterrado no interior, junto do jazigo dos pais, pedra sobre pedra, sangue do mesmo sangue.