FABRÍCIO CARPINEJAR

Fidelidade mineira

“Ela sente-se recompensada pela lembrança seriada, com a gratidão de uma poupança alimentada aos poucos

Por Da Redação
Publicado em 10 de janeiro de 2021 | 03:00
 
 
“Ela sente-se recompensada pela lembrança seriada, com a gratidão de uma poupança alimentada aos poucos” Hélvio/O Tempo

Se tem algum lugar em que a fidelidade vingou foi em Minas Gerais. Eu me refiro ao canhoto de fidelidade de restaurantes para conseguir uma refeição gratuita assim que se completarem os dez almoços. 

Mineiro é disciplinado e não perde de vista os papeizinhos para receber o carimbo. É uma devoção de cofre, de cadeado. 

Julgo até temerário os estabelecimentos se dedicarem a tal incentivo. Só terão prejuízo pela obsessão pontual de seus clientes. 

Minha esposa pode esquecer onde colocou o cartão de crédito, confundir senha bancária, deixar o celular no balcão de uma loja, mas nunca extravia o seu vale para acumular cortesias. Deve ter um bolso secreto nas roupas. 

O que ela gosta mesmo é da comida obtida pelo esforço da memória e da sua organização. 

Ela pisca com luxúria: 

– Hoje é de graça e vou extrapolar. 

Os pratos rotineiros de 200 g saltam para meio quilo na hora do prêmio de frequência. Ela aproveita como se fosse um banquete, lambuza os beiços. 

Não teria igual prazer em um restaurante chique, ainda que eu pagasse a conta. 

Ela sente-se recompensada pela lembrança seriada, com a gratidão de uma poupança alimentada aos poucos.

É o seu décimo terceiro salário gastronômico todo mês.

Promoção vem a ser um sobrenome oculto de qualquer família do interior. No nosso caso, Beatriz tem os costados em Rio Espera e aprendeu a ser caprichosa na simplicidade. 

Não que seja uma morta de fome, pelo contrário. Mas não dispensa oportunidades, atenta a qualquer chance de brindes. 

Vem da sua infância o hábito de destacar cupons de jornais e revistas, para ganhar conjunto de panelas e louça. As publicações sempre estavam amputadas na capa no momento de ler, com aquelas linhas pontilhadas cortadas ainda que fosse pela faca de pão. Ajudava a sua mãe a recolher as ofertas e manter a sequência dos avisos para a retirada final do produto. Havia um calendário à parte, um tempo correndo simultâneo dentro de casa para não ser pego de surpresa pela expiração da campanha. 

A última gaveta do armário azul da cozinha servia para depositar os recortes, junto dos encartes de receitas. Era de conhecimento geral que ali reinava a possibilidade de incrementar os objetos domésticos. 

Por isso, as tendas de degustação sempre têm fila nos supermercados. Por isso, é um sucesso o guia dos restaurantes com voucher de descontos em dias específicos. Por isso, as urnas de shoppings vivem abarrotadas de esperança por um carro zero. Por isso, prevalece a mania pelas milhagens e pelos descontos a partir do histórico de compras. Por isso, o “compre dois e leve três” no Mercado Central é ainda o melhor marketing. 

Mineiro é um ajuntador nato. Tudo o que é de graça já é dele, por antecipação cultural. Ninguém mais tira. 

Já estou pensando em não mais mandar para Beatriz cartãozinho com versos junto das rosas em nossas datas comemorativas, mas um cupom: “no décimo bilhete tem direito a orquídeas”. 

Pode ter certeza que ela vai me colecionar.