Mineiro não esquece o que tem. Pode até não usar, mas não esquece. 
 
Guarda filigranas na memória, apesar das recordações estarem longe dos olhos. Preserva um inventário na alma, listando os seus pertences com uma minúcia característica da declaração de Imposto de Renda. Qualquer ausência, cai na malha fina. 
 
Seu guarda-roupa é um cofre, seu mobiliário forma um tesouro. Ele valoriza o que adquiriu com o seu suor e é imensamente grato pelo que recebeu de presente. 
 
É um colecionador de calendários. Lembra a data em que comprou o fogão, a geladeira, a televisão, qual foi a loja, quantas parcelas, se houve frete ou retirou no balcão. Os objetos aniversariam dentro de sua alegria de viver. 
 
Uma hora virá com uma pergunta ancestral: onde está aquela camisa que ganhei da tia Norma quando completei trinta anos? Ainda fará sentido, mesmo depois de uma década. 
 
Nem um museu possui um registro tão impecável e fidedigno de suas obras de arte. 
 
Eu estava limpando a casa com aspirador.  Do  meu jeito, que não pode ser chamado de faxina. É uma enganação bem feita, impregnada do perfume dos aromatizantes de ambiente. 
 
Homem é um bicho monotemático. Emprega a mesma flanela para tudo. É um perigo passar o pano de chão em cima da pia. É um perigo deixá-lo sozinho sem fiscalização. Os vermes são seus fiéis companheiros. 
 
Pois, de modo torto, apressado, decidi atalhar a sujeira e levantar o jato sugador do piso para a mesa de jantar. Ninguém notaria a minha malandragem. Assim não precisava sacudir os farelos da mesa. Eu me senti o gênio da lâmpada. Pena que a lâmpada queima. 
 
Ao encerar de um lado para o outro, distraído,  levei uma borrachinha de cabelo marrom de minha esposa. Desenganchei os canos para ver se ela tinha ficado presa. Nada. Entrou para o saco. 
 
“Ah”, concluí, “Beatriz não vai notar o sumiço de um reles elástico”. 
 
Dois dias depois eu a vejo desorientada, andando pra lá e pra cá pelos corredores, mexendo nas caixinhas e estojos, virando as gavetas. 
 
- O que está procurando?
- Uma chiquinha escura. 
 
Quem questiona tem a resposta que merece. 
 
- Mas é só um rabicó, compramos um novo - busquei despistá-la. 
- Não, é o que uso para prender o cabelo na ginástica. 
 
Ela não parou, não relaxou, desmarcou a aula, porque quando mineiro entra no modo obsessivo para resgatar o passado, ele não desiste. Empaca como mula diante do caminho errado. Começa uma greve espiritual, entoando Salve Rainha e São Longuinho. 
 
Ninguém consegue trabalhar com aquela ladainha religiosa nos ouvidos. 
 
Tive que dizer que, de repente, aspirei o elástico sem querer. A confissão da verdade é sempre parcial. 
 
Ela encheu os olhos de esperança. 
 
- Será? Olha para mim? 
 
Lá estava eu realizando uma endoscopia no aspirador, mexendo em novelos de fios de cabelo, poeira e ciscos em seu estômago, destrinchando o conteúdo nojento com luvas amarelas da nossa lavanderia. 
 
Quando eu reavi o seu minúsculo objeto, ela me abraçou: 
 
- Meu herói! 
 
Mal sabia que eu era também o bandido.