FABRÍCIO CARPINEJAR

O sono parcelado do mineiro

'Morfeu não me abraça sem chantagem emocional, sem mimos e presentes. Para quem é daqui, ele oferece colo e cafuné.'

Por Da Redação
Publicado em 09 de maio de 2021 | 03:00
 
 
Hélvio/ O Tempo

Invejo a calma do mineiro. Não sei se é a esperança que tudo vai se resolver e que não adianta queimar os neurônios à toa, mas ele não pena por antecedência. Deixa a bagagem se ajeitar pelo sacolejo do trem. 

Mineiro tem algum calmante diluído no sangue. Um Rivotril natural. Ele não é solene para dormir. Quando bate o cansaço, fecha os olhos. Pode descansar de pé numa fila, escorado no balcão, sentado numa cadeira, encostado na parede, de carona no carro. Ele capota com facilidade, numa narcolepsia da leveza. 

Eu tenho que enfrentar rituais para repousar: ler, ver um filme, desacelerar pouco a pouco. Às vezes, conto carneiros, tomo chá, uso aplicativos de chuva e vento, preparo um resumo do dia, puxo do passado as saudades mais doces. Nunca a sonolência vem de imediato. Ela é conquistada com esforço, até espantar as preocupações e os problemas. Demoro uma hora no mínimo para me tranquilizar quando entro debaixo das cobertas. Dependo do aquecimento, de me sentir acolhido e seguro. 

Morfeu não me abraça sem chantagem emocional, sem mimos e presentes. Para quem é daqui, ele oferece colo e cafuné. 

O mineiro já dorme em alta velocidade, de repente, de modo inexplicável. Mesmo que esteja agitado, ao definir que precisa se aquietar, ele se desliga. Há um interruptor dentro de si para apagar a luz e o mundo. 

Essa é a diferença: ele decide o momento de tirar uma pestana. Como uma meditação. Não espera a idealização da noite, aproveita os horários quebrados para repor a energia. Nasceu com blecaute nas cortinas das pálpebras. 

Por isso que ele nem faz questão da sesta após o almoço. Ele parcela o cochilo em várias etapas durante o dia. 

Se há alguns minutos de trégua do emprego, localiza o ponto remoto da respiração e mergulha na paz do silêncio interior. Nem avisa quem se encontra ao lado, vai!  

O interlocutor é capaz de passar alguns minutos falando sozinho até ouvir um ronco saboroso do outro lado, a ruminação secreta dos pensamentos e das fantasias. 

A imprevisibilidade do apagão é também uma defesa da sua liberdade, para evitar julgamentos de que é preguiçoso ou folgado. Como ele não se retira para relaxar, não depende da cama ou do sofá, não se incomoda com a luz e com o barulho, sugere que é apenas resultado do cansaço, que a dormência surgiu espontaneamente, por força maior. Cria uma solidariedade nas pessoas ao redor, uma compaixão pelo excesso de trabalho, que prontamente respeitam o seu involuntário isolamento. 

Eu me irrito com o controle da minha esposa, e seu desestresse emocional. Vive invariavelmente bem humorada, com a pele ótima, disposta e sorridente, porque nunca se afasta para pegar no sono. É resolvida com suas evasões restauradoras. Prega os olhos e retoma a visão arregalada, como se nada tivesse acontecido. Seus sonhos são fáceis de entrar, de porta sempre encostada. 

Chegou a dormir deliciosamente no meio de uma discussão de relacionamento. Eu perdi a vontade de reclamar. Não tinha graça voltar ao assunto em seguida e reprisar os fatos (até onde você ouviu?). Mostrou que não tinha razão, que estava realmente exagerando. Minha bela adormecida me concedeu um gentil tempo para pensar melhor, esfriar a cabeça e o coração e despertá-la com um beijo.