Tornou-se impossível vigiar o seu par.

Ciúme e possessividade passaram a ser sentimentos em extinção por aqui.

Não adiantava nada tentar discutir a relação, tudo acabaria em samba.

Belo Horizonte ficou sitiada pelo Carnaval. Nem o Waze conseguiu adivinhar qual rua se encontrava inacessível, devido à mudança rápida e inesperada das marés humanas.

Foram 581 cortejos pelas nove regionais da cidade, um aumento de 15% em relação à edição de 2023.

Se a esposa falou para o marido que ia à padaria e logo retornava, é bem provável que ele tenha voltado para a casa de madrugada sem nenhum pãozinho debaixo dos braços. Qualquer pessoa poderia ver-se abduzida por amigos e arrastada pela massa colorida em suas redondezas. Não havia como escapar da folia.

Já carrego o histórico de uma década de Carnavais com Beatriz em Belo Horizonte. Nosso casamento já resistiu a diversas mobilizações carnavalescas, reencarnando vampiros, vikings, marinheiros, odaliscas e sheiks, com roupas de ginástica, a pele pintada de azul, de sunga e biquíni.

Não existe maior teste de longevidade do relacionamento: brincar e não se sentir estranho por ser casado, apesar do mundaréu de solteiros caçando e beijando como se não houvesse amanhã.

Nas nossas andanças nos bloquinhos, um dos momentos mais aguardados – na marcha incansável atrás do trio elétrico, sob o calor exasperante – era aquele em que uma alma caridosa do bairro nos molharia com a mangueira do jardim.

Percorríamos as frentes das residências, batendo palmas, soltando urros, suplicando a bendita água.

— Ó, tio, ó, tia, ligue a mangueira! Jogue água na gente!

Os vizinhos se transformavam em nosso Corpo de Bombeiros para aliviar o suor e a serpentina que cobriam os nossos corpos.

Solicitávamos uma trégua de alívio, uma chuva de graça, um chafariz improvisado, um túnel líquido para retomar as energias, repor o fôlego na garganta e seguir as canções até o fim.

Nosso ponto de vista sempre havia sido o daqueles que dançavam na rua, daqueles pedestres foliões loucos, daqueles que levantavam as mãos para cima pelo maná do céu, daqueles que vestiam os abadás e esqueciam completamente onde estavam, tamanha a pernada em transe, de tanto que andavam desde cedo, de tanto que ferviam a esmo.

Não é que, desta vez, o Carnaval nos pegou de surpresa? Estávamos descansando na área de recreação do prédio, depois do cansaço emocional de velórios e enterros de parentes e amigos, alheios à algazarra, introspectivos pela saudade, quando escutamos os gritos da multidão em nossa direção:

— Ó, tio, ó, tia, ligue a mangueira! Jogue água na gente!

Eu olhei para Beatriz, ela olhou para mim, e percebemos que mudamos de perspectiva: transformamo-nos no tio e na tia da mangueira.

Nossa rua estava bloqueada, invadida por milhares de pessoas. Não tínhamos nos dado conta de que haveria bloco em nossas fuças.

Rimos um para o outro, como se só pudéssemos admitir assim, pela gargalhada mútua, a dura verdade de que envelhecemos de repente, envelhecemos juntos.

Puxamos o carretel da mangueira e permanecemos por longos minutos sendo ovacionados, aplaudidos, atirando água para todos os lados, em nosso mirante de amor, em nosso camarote vip da maturidade.