Vittorio Medioli

vittorio.medioli@otempo.com.br

A árvore de Calisto

Publicado em: Dom, 09/01/22 - 03h00

A correnteza do tempo passa e arranca o que encontra. A fortuna se alterna em seus favores e desprazeres, o equilíbrio cósmico se encarrega de processar o inevitável com implacável determinação. 

Foi-se aos 83 anos e, para a maioria dos leitores desta coluna, pouco significa Calisto Tanzi, um ex-empresário italiano que sacudiu os noticiários também do Brasil, no final do século passado e no começo do novo. Para enquadrá-lo na moldura, basta lembrar as vitórias de Nelson Piquet na Fórmula 1, com um carro branco-leite e azul como o mar. “Parmalat” era o nome que se destacava, e atrás desse nome de patrocinador emergente do esporte estava exatamente Calisto Tanzi. Naquela época, era raro alguém apostar numa camisa de atleta, num carro de corrida, num time de vôlei, na compra de um jogador de futebol. 

Ele abraçou tudo ao mesmo tempo e mostrou que o investimento de marketing no esporte dava resultado. Um exemplo foi quando contratou o melhor atleta de futebol do Japão apenas para deixá-lo no banco de reserva do Parma Futebol e lançar em Tóquio a camisa dele com a marca Parmalat. Resultado: captou U$ 1,5 bilhão em debêntures para a “fracassada” empresa dele. 

Calisto era arrojado, no limite do temerário, mas seus negócios aumentavam, se multiplicavam – inicialmente, na Itália e, depois, no mundo inteiro. A Parmalat adquiriu dimensões planetárias, ocupou grande fatia de mercado e se ergueu como rival da própria Danone e da Nestlé na comercialização de derivados do leite. Avançou em outras frentes da alimentação, como biscoitos, macarrão, queijos, conservas e molhos de tomates, e também do turismo e da comunicação com canais de TV. No esporte, chegou a controlar vários clubes de futebol – não só o Parma, mas o Palmeiras, aqui, no Brasil – e estampou a marca Parmalat até na camisa do Real Madrid. 

Calisto surfava uma onda de ouro, era o próprio Midas, quebrador de tabu, recordes, firmando-se como um vencedor do impossível. 

As relações políticas dele eram frenéticas, e ele passava mais tempo em Roma que na própria Milão, capital das finanças italianas, ou Parma, sede de seus negócios. No Brasil, começou em Itamonte, em 1976, tendo comprado em seguida mais de 20 laticínios em todo o território do Brasil e outros tantos em vários países sul-americanos. O Palmeiras ganhava títulos atrás de títulos, e no portfólio da empresa constava mais da metade da seleção brasileira. Os bancos oficiais italianos liberaram bilhões e bilhões como se fosse o dinheiro mais bem investido do mundo. 

Mas a correnteza leva as águas acima do barranco e arrasta árvores seculares, e dessa forma se foi definitivamente a Parmalat de Calisto. Caiu pondo fim a uma ciranda que faz lembrar, aqui do outro lado do oceano, Eike Batista, os irmãos Joesley e Wesley Batista e Marcelo Odebrecht. 

Na verificação das contas secretas de Calisto, descobriram-se os nomes de centenas de políticos de todos os partidos. Raro um político de médio prestígio e sucesso não ter confessado o recebimento “dentro da cota legal” eleitoral. A parte não legal ninguém reconheceu. 

Morreu agora, com 83 anos, depois que sua coleção de arte, seu iate principesco, seus aviões transcontinentais, suas casas e qualquer objeto foram a leilão para amenizar o rombo de R$ 120 bilhões, ocorrido em 2003, quando a não renovação de um empréstimo desencadeou o tsunami que varreu seu frágil castelo de papel e fraudes contábeis. Os bancos aceitaram em garantia um saldo de U$ 4 bilhões na conta das ilhas Cayman – que, na realidade, nunca existiu. 

A filha, uma espécie de princesa, passou a trabalhar de recepcionista no balcão de um hotel, e o filho, que morava aqui no Brasil no auge da ciranda, submergiu no anonimato. 

Como todas as árvores que deram frutos e sombra no império de Calisto, sumiram como bolhas de sabão. O ex-empresário permaneceu longos anos na cadeia, sem mordomias, até que, por idade e condições físicas, foi arrestado em prisão domiciliar. 

Enquanto se pensa serem necessárias algumas gerações para tantos feitos, Calisto conseguiu queimar as etapas tanto na escalada quanto na queda. Dele, em breve, restará uma lembrança, que depois se apagará, como da árvore que nasceu portentosamente frondosa e se foi na enchente.