O TEMPO

Vale um crescimento chinês

Se as forças políticas de Minas não se unirem, mais uma grande oportunidade será perdida

Por Vittorio Medioli
Publicado em 02 de fevereiro de 2020 | 03:00
 
 

Em 2013, a Valor Logística Integrada (VLI), empresa controlada pela Vale, no ato de receber a concessão de vários trechos ferroviários da União, especialmente em Minas Gerais, assumiu uma contrapartida em obras de transposição nas áreas cortadas pelas suas composições ferroviárias. Foi estabelecido o valor de R$ 761.757.731,91, tendo como base o mês de março de 2012, constando ainda a atualização pelo IPCA e mais 15% de juros ao ano. O termo previa que, “após finalização de inspeção completa acerca do estado de conservação de todos os bens arrendados envolvidos”, seria apurado “montante adicional referente à indenização”, que seria quitado “nos mesmos moldes indicados no item anterior, podendo haver indicação de novos projetos por parte do Ministério dos Transportes”. O item IV acrescentava que o montante a ser investido pela FCA não comporia o Ativo da Concessionária, “devendo o correspondente dispêndio ser classificado como doação (aos entes federativos)”.

O termo de execução das obras terminou em outubro de 2018, e a VLI fugiu totalmente do item IV, o que poderia dobrar as contrapartidas. A empresa não aplicou sequer um real do valor, que, corrigido pelo IPCA, subiria a R$ 1,18 bilhão e, com os juros de 15%, a mais de R$ 3 bilhões. Caso os juros sejam reduzidos ao mínimo legal de 6% ao ano, o investimento devido pela VLI será de, no mínimo, R$ 1,86 bilhão.

As fórmulas protelatórias adotadas pela VLI, fatiadas numa sequência de pretextos e armadilhas infindáveis, estão prejudicando muito municípios como Betim, que é cortado por 37 km de vias férreas. A cidade luta para conseguir a construção de dez transposições (trincheiras e viadutos) consideradas imprescindíveis para eliminar paralisações de trânsito provocadas pelas composições ferroviárias quilométricas da VLI. Além desse transtorno, a população também é agredida por sinais sonoros audíveis em um raio de 2.000 m a cada vez que uma locomotiva transpassa suas linhas.

Apesar de ocorrerem dezenas de abalroamentos de ônibus e veículos e atropelamentos fatais de pedestres, a empresa da Vale nem sequer instalou as cancelas e continua devendo as intervenções que dariam segurança prevista nas normas de trânsito e garantiriam a mobilidade urbana. A VLI continua devendo, independentemente do vencimento da contrapartida que não utilizou. Para a controlada da Vale, a cidade de Betim, mais que pela sua população de meio milhão de habitantes, exposta a seu descaso e aos riscos, representa, em seus negócios bilionários, um acidente que pode ser embrulhado e congelado.

A Vale e suas controladas, com patrimônio trilionário, representam uma barreira intransponível consolidada pela insensibilidade social, pelo descaso com as vidas que ceifa e pelos desastres de ressonância mundial que provoca. Isso enlameando não só a população, os municípios e os Estados, mas o Brasil como um todo.

A gravidade do caso da VLI, entretanto, é superada amplamente pelo maior desastre ambiental de todos os tempos, com a queda da barragem de Fundão, em Mariana, da Samarco, outra controlada da Vale. Ruiu em 5 de novembro de 2015, deixando um rastro de mortes, destruições e devastação até o litoral do Espírito Santo, matando a fauna e comprometendo a biodiversidade nas regiões ribeirinhas ao longo de 600 km do rio Doce.

A Vale e sua sócia (a australiana BHP) instituíram a Fundação Renova, ingenuamente deixada pelo Judiciário sob a responsabilidade das mineradoras, que, em quatro anos, aplicaram, segundo balanço da fundação confirmado por autoridades, R$ 7,42 bilhões até novembro de 2019. Ainda restam cerca de R$ 4 bilhões de um total previsto de R$ 11,9 bilhões de indenizações e compensações até 2030. O valor total consta num Termo de Transação e Ajustamento de Conduta.

A Vale se repetiu e se superou em tragédia com a queda da barragem de Brumadinho. Além de 270 mortes, aniquilou o rio Paraopeba por inteiro e provocou imensas perdas de toda ordem, inclusive ao PIB de Minas, em decorrência de paralisações de outras concessões públicas de lavras em todo o Estado mineiro.

Nenhuma dessas tragédias afetou o desempenho econômico da Vale, que explora jazidas em outros Estados e países. A escalada dos preços das comodities decorrente dos desastres reposicionou a lucratividade das empresas na ordem de R$ 30 bilhões líquidos depois de todas as provisões de indenizações. O atraso na volta às operações não prejudicou a Vale, cujos lucros e ações avançam sem parar, mas sim o Estado e os municípios atingidos. Para se ter uma ideia, o valor de mercado da Vale um dia antes da tragédia de Brumadinho era de R$ 296 bilhões. Esse valor foi totalmente recuperado quase um ano após o desastre. Em 22 de janeiro deste ano, a Vale já atingia R$ 297 bilhões em valor de mercado.

Após o rompimento da barragem em Brumadinho, o rio Paraopeba foi aniquilado. Não sobrou um peixe. A fauna em geral, que usava das águas, não sobreviveu à ingestão de lama com alto teor de metais pesados. Milhões de toneladas de minérios se depositaram no rio e de lá nunca sairão.

As indenizações e as compensações decorrentes do desastre de Brumadinho estão sendo calculadas em € 6 bilhões, ou R$ 28,5 bilhões (na cotação atual). A Vale reservou R$ 24,1 bilhões para todas as reparações, como consta em seu balanço financeiro, e, segundo ela, R$ 6 bilhões já foram desembolsados até agora para essa finalidade.

Somando-se o Vale do Paraopeba e a represa de Três Marias, 28 municípios foram diretamente impactados. Minas Gerais sofreu desinvestimentos, prejuízos ao seu turismo e descrédito internacional após esses dois apocalípticos desastres ambientais.

A Vale mostrou e consolidou sua capacidade de se esquivar das indenizações e usa de protelações, expedientes e investimentos na distribuição de propaganda, que tira do foco o cerne da questão – que não é apenas a indenização, mas a compensação. Esses valores devem ser justamente estabelecidos e acrescidos de juros e correção. Em hipótese alguma devem ser deixados para a gestão financeira da Vale, mas depositados em fundos, aos quais os municípios e o Estado possam ter acesso pela habilitação através de projetos e planos que recuperem as condições anteriores e sirvam para alavancar o desenvolvimento perdido e atrasado.

Os valores devidos a Minas ultrapassam R$ 40 bilhões (R$ 3,1 bilhões da VLI, R$ 9,9 bilhões devido pelo acidente de Mariana e R$ 28,5 bilhões por causa de Brumadinho), destinados especialmente às bacias atingidas, que aguardam indenização e compensação das perdas. Os valores indenizatórios, investidos em um período de quatro a cinco anos nos setores críticos de saúde, educação, infraestrutura e empregabilidade, poderão realizar um “crescimento chinês” nos próximos anos em Minas, com taxa de até 10% de aumento do PIB. A receita pública será beneficiada, pois será possível recompor um quadro de sustentabilidade que se perdeu tanto para os municípios como para o Estado com a queda de 20% do PIB mineiro registrada de 2014 até 2019.

Se as forças políticas de Minas não se unirem, mais uma grande oportunidade será perdida.