Em mais um capítulo da conturbada relação entre o governo de Minas e a Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), o governador Romeu Zema (Novo) disse que os deputados priorizam interesses pessoais ao que é melhor para Minas Gerais e insinuou que os parlamentares são mercenários.
O governador disse que a relação do governo com o Legislativo estadual não é “excelente” nem “péssima”, e sim “média”. Zema declarou também que as pessoas procuram o setor público para resolver problemas pessoais, muitas vezes financeiros.
“Mas o Legislativo está dentro desse contexto que falei. Muitos lá ainda pensam no ‘o que eu ganho com isso’ do que ‘o que é bom para Minas Gerais’. Isso faz com que tudo fique mais difícil”, disse Zema em entrevista ao site Boletim da Liberdade no último sábado (17).
“Nós precisamos desse espírito de doação no setor público. Da mesma forma que muitas pessoas vão trabalhar em organizações sociais, em ONGs, até sem remuneração. O setor público precisa mais desse espírito de voluntário e não de mercenários. E infelizmente, muitas vezes esse é o tipo de pessoa que o procura”, concluiu o governador, logo em seguida.
As declarações irritaram os deputados estaduais por vários motivos: eles consideram que a ALMG tem ajudado o governo durante a pandemia, criticam a generalização feita pelo governador e também apontam para promessas de campanha de Zema que não foram cumpridas, como a de que seus secretários seriam voluntários e não receberiam salários até que a folha do funcionalismo estivesse em dia.
“Acho que deve ter sido um lapso, um ato falho dele em algum momento, porque não quero acreditar que ele pense isso da Assembleia Legislativa, dos parlamentares. As realizações do mandato dele tiveram uma participação fundamental da Assembleia”, disse o líder do bloco independente, o deputado Cássio Soares (PSD), que foi o relator da reforma da Previdência estadual proposta por Zema e aprovada no final do ano passado. “O sentimento é de lamentação e de indignação por parte de vários deputados”, acrescentou.
Para o líder da oposição, André Quintão (PT), a declaração de Zema demonstra ingratidão. Ele lembra que a ALMG aprovou rapidamente a contratação temporária de médicos e profissionais de saúde em abril do ano passado, além de destinar mais de R$ 500 milhões em emendas parlamentares e recursos economizados para o enfrentamento à Covid-19. O petista também cita projetos do governo que seu bloco votou contra, mas que foram aprovados, como a antecipação dos recebíveis do nióbio e a reforma da Previdência.
“Quando ele diz que tem mercenários na Assembleia, ele generaliza, ele cria um desconforto com o conjunto dos deputados. Como ele tem a responsabilidade de ser governador, ele deveria explicar melhor o que ele quis dizer com isso”, afirmou Quintão.
O deputado Mauro Tramonte (Republicanos) adotou linha parecida: “Não somente eu fiquei irritado, mas a totalidade de deputados com quem falei. [O governador] Vacilou e vacilou feio em querer falar, sem antes pensar. Como sempre”, disse.
“Se a sua administração é transparente e séria da maneira que sempre fala, acho que deveria ter o bom senso de dar nomes a essas pessoas que solicitam benefícios próprios, e não passar para a sociedade como se todos os deputados utilizassem dessas artimanhas mencionadas por ele próprio”, declarou Tramonte.
O deputado Repórter Rafael Martins (PSD) lembrou que durante a campanha eleitoral Zema declarou que seus secretários seriam voluntários e não receberiam nada até que os salários dos servidores estivessem em dia. “O que se vê hoje é justamente o contrário. São destinados ao alto escalão os famosos ‘jetons’, bonificações de até R$ 14 mil por mês, que engordam ainda mais os salários dos secretários que seriam voluntários, subsecretários e assessores que ficam o dia todo no ar condicionado sem sequer conhecer a realidade do estado”, disse.
Zema estava defendendo participação voluntária no setor público, argumenta líder
O líder de Governo, o deputado Gustavo Valadares (PSDB), disse, em nota, que conversou com o governador. Segundo ele, Zema disse que as declarações não refletem seus pensamentos sobre o Parlamento. “E, sim, a sua visão geral de uma defesa pessoal da participação voluntária no setor público”, relatou o deputado.
A despeito da justificativa, Valadares manifestou o que chamou de “correta e necessária defesa ao Poder Legislativo" e disse que o parlamento é o estuário da democracia.
“Em meio a toda essa crise humanitária, social, econômica que atravessa o nosso país, a história nos aponta, mais uma vez, que a política é o caminho. A política é instrumento insubstituível da civilização humana”, disse.
O líder de governo também disse que se há desvios, eles precisam ser apontados, mas que generalizações levam a interpretações equivocadas em todas as áreas da vida
“Todos fazemos política o tempo inteiro. A demonização da política é um equívoco que só afasta os bons e a sociedade do debate. Se há desvios, precisam ser apontados e punidos. Generalizar só nos leva a interpretações equivocadas, em todas as áreas da vida. E a vida não é diferente da política”, concluiu.
O líder do bloco de governo, o deputado Raúl Belem (PSC), repetiu a justificativa do governador em nota, e também defendeu a Assembleia Legislativa.
"O Parlamento tem agido, com independência e harmonia necessárias, ao lado do Executivo e demais poderes na busca conjunta de soluções. O caminho é a política. A boa política. Generalizações ou observações sem a justa realidade não contribuem. É hora de agir com respeito, compreensão e, acima de tudo, união. Minas é a nossa causa", disse.
Procurado, o governo de Minas Gerais não se manifestou até a publicação desta reportagem.
Declaração pode prejudicar andamento das propostas do governo
A declaração de Zema ocorreu poucos dias antes dos projetos do governo retomarem a tramitação na ALMG. A partir de quinta-feira (22) voltam a acontecer as reuniões de comissões, etapa necessária para que projetos cheguem para a votação em plenário. As comissões estavam suspensas desde o dia 17 de março.
A lista de projetos prioritários do governo a ser analisada nas próximas semanas é longa: a autorização do uso de R$ 11 bilhões do acordo com a Vale, a entrada de Minas Gerais no Regime de Recuperação Fiscal, a privatização da Codemig e a criação do Centro Mineiro de Controle de Doenças.
Antes da declaração do governador, esses projetos já enfrentavam resistência. Muitos deputados discordam da destinação dos recursos da Vale e defendem que parte do dinheiro seja utilizado no enfrentamento à pandemia. Nesse sentido, o presidente da ALMG, Agostinho Patrus (PV), já declarou que os deputados vão destinar R$ 30 milhões para a tentativa da UFMG de desenvolver uma vacina nacional contra a Covid-19. Outras iniciativas semelhantes envolvendo a Funed também podem ser incluídas no texto.
A fala de Zema piorou o cenário político para o governo. O deputado Cássio Soares (PSD), líder do bloco independente, que tem maioria na ALMG com 39 deputados, afirma que é preciso união no momento que o Estado ultrapassou a marca de 30 mil mortes na pandemia.
“É claro que uma manifestação como essa não traz nenhum tipo de benefício neste momento. [Ao contrário] Traz inquietação desnecessária. O nosso papel vai ser de continuar colaborando para que Minas Gerais avance nas principais pautas”, declarou.
Já o líder da oposição, André Quintão (PT) disse que o bloco liderado por ele vai manter a coerência, mas deixou claro que a declaração de Zema afetou o ambiente no Legislativo.
“Aquilo que for positivo para o Estado, principalmente em tempos de pandemia, terá a nossa contribuição, independente dos desacertos políticos do governo. [Mas] Do ponto de vista do ambiente político, obviamente, pelo que eu conversei hoje, nos grupos, eu senti que a generalização incomodou o conjunto da Assembleia, principalmente quem vota com o governo”, disse.
Soma-se a isso o fato de que os projetos do governo terão que concorrer por espaço na pauta com as iniciativas parlamentares. O presidente Agostinho Patrus (PV) declarou que pretende aprovar o Recomeça Minas ainda em abril. O projeto é uma iniciativa capitaneada por ele com o apoio dos demais 76 deputados que visa conceder incentivos tributários para ajudar na retomada da economia mineira ao mesmo tempo que promove uma renegociação de dívidas para aumentar a arrecadação e bancar as despesas do projeto.