Um decreto do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) pode acabar com a polêmica em torno da forma de cálculo da despesa com pessoal dos Estados. O presidente instituiu uma câmara técnica que tem, entre as suas atribuições, alterar as interpretações técnicas da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), padronizando a forma de cálculo para os limites previsto na legislação.
Em Minas Gerais, o Tribunal de Contas do Estado (TCE) exclui da despesa com pessoal os gastos com aposentados e inativos. O entendimento permitiu que o governador Romeu Zema (Novo) concedesse reajuste de 13% para as forças de segurança. Se o gasto com inativos for contabilizado, o Estado estoura o limite de 60% da receita corrente líquida em gastos com pessoal imposto pela Lei de Responsabilidade Fiscal e fica impedido de conceder qualquer tipo de aumento ou recomposição.
A concessão do reajuste fez com que o Partido Novo, sigla ao qual Zema é filiado, fosse ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedir que se estabelecesse um entendimento a ser adotado pelos Tribunais de Contas de todo o país sobre a forma de cálculo do gasto com pessoal.
O Decreto Presidencial 10.265/2020, publicado em 5 de março, estabelece a criação da Câmara Técnica de Normas Contábeis e de Demonstrativos Fiscais da Federação. O objetivo é que a câmara assessore a Secretaria do Tesouro Nacional na elaboração das normas gerais relativas à consolidação das contas públicas.
O texto estabelece o alcance das normas elaboradas: os cálculos contábeis seriam padronizados no âmbito da União, dos Estados e dos municípios.
Para o professor de direito financeiro da Universidade de São Paulo (USP) Fernando Facury Scaff, a despeito de parecer técnica, a instituição da câmara técnica é uma forma de amarrar a contabilidade dos entes federativos e fazer com que todos eles se orientem pela Secretaria do Tesouro Nacional.
“Despesa com pessoal: o limite do teto. Tem ou não tem aposentado? Essa é uma pergunta. Quando se diz que tem que aplicar 25% (da receita corrente líquida) em educação, os (gastos com) aposentados entram ou não entram nesse limite?”, questiona, citando impasses que poderão ser, agora, resolvidos pela Secretaria do Tesouro Nacional.
Scaff afirma que essas orientações são técnicas, mas partem de decisões políticas. Para o professor da USP, a Constituição estabelece que normas gerais, que tenham que ser seguidas por Estados e municípios, devem ser instituídas por meio de lei, e não por decreto.
“O que foi feito pelo governo foi um drible no Legislativo. O decreto, quem tem tinta na caneta (para fazer) é o presidente. A lei tem que passar pelo Congresso, onde são 513 deputados”, afirma.
A câmara técnica se reunirá no mínimo duas vezes por ano e será composta por 16 membros. Nove deles serão indicados por órgãos associados à esfera federal; dois membros indicados pelo âmbito estadual; outros dois pelo nível municipal; dois membros de órgãos ligados aos Tribunais de Contas e um último membro representando a sociedade civil. A secretaria executiva será exercida pela Secretaria do Tesouro Nacional.
Não há drible, afirma Ministério da Economia
Procurado, o Ministério da Economia disse que a Lei de Responsabilidade Fiscal é clara ao determinar que a Secretaria do Tesouro Nacional é o órgão responsável por editar normas gerais de contabilidade e que a câmara técnica apenas auxilia o órgão na elaboração das normas.
"A competência para editar as normas é do Tesouro enquanto não for instituído um outro conselho, o Conselho de Gestão Fiscal (CGF)", diz o ministério. Esse conselho também está previsto na LRF, aprovada em 2000, mas nunca foi criado. Ele seria formado por representantes de todos os Poderes e esferas de governo, do Ministério Público e entidades técnicas representativas da sociedade.
A Lei de Responsabilidade Fiscal prevê que o Conselho de Gestão Fiscal será o órgão definitivo para acompanhar e avaliar a política de gestão fiscal de todos os entes federativos.
“Como não foi implantado o CGF, o Tesouro possui competência normativa plena para este tema, e o faz desde a edição da LRF em 2000, com fulcro na lei. Os manuais do Tesouro, desde então, sempre foram editados de forma técnica e baseada em fundamentos sólidos”, diz a nota do ministério.
O Ministério da Economia argumenta ainda que desde 2007, em vista da não criação do Conselho de Gestão Fiscal, foram criados grupos técnicos que uniam representantes da Federação com o objetivo de dar mais legitimidade a seus normativos. Esses grupos, explica a pasta, evoluíram para a câmara técnica que foi criada por meio de uma portaria em 2017, extinta por um decreto em abril de 2019 e recriada agora pelo presidente Jair Bolsonaro por decreto.
“Há pelo menos 13 anos, os manuais do Tesouro são discutidos com a Federação, e o Tesouro faz essas discussões de maneira voluntária. Não há drible algum, pois apenas formalizou algo que já existia, só que agora por intermédio de decreto”, afirma o texto enviado à reportagem.
“Não se pode confundir a câmara técnica com o Conselho de Gestão Fiscal, pois somente este último pode ser criado por lei e iria substituir o Tesouro em sua competência normativa”, diz a nota.
De acordo com o Ministério da Economia, a câmara técnica “é um conselho consultivo, de assessoramento, e não deliberativo”. Ou seja, pode apenas recomendar mudanças à Secretaria do Tesouro Nacional em vez de determiná-las.
A nota diz ainda que o fato de o Conselho de Gestão Fiscal não ter sido criado até hoje pode gerar uma falsa impressão de que não há interesse, mas que a “aparente inércia ocorreu em boa parte por conta do próprio texto do art. 67 da LRF, que prevê a participação de todos os Poderes e entes da Federação”.
Segundo o Ministério da Economia, o Poder Executivo federal tem se esforçado para que o Conselho de Gestão Fiscal saia do papel, tendo atuado junto ao Congresso desde 2016 pela aprovação de dois projetos de lei que tratam da criação do conselho.
O primeiro é PLP 210/2015, que aguarda desde julho do ano passado a designação do relator na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O segundo é o PL 3744/2000, que, depois de ter tramitado por 19 anos, foi aprovado na Câmara no ano passado e agora tramita no Senado.