Comportamento

Como lidar com o desafio de crianças conectadas durante as férias escolares?

Em um mundo cada vez mais tomado por telas, os pais devem procurar outras maneiras de interação com os filhos

Por Da Redação
Publicado em 19 de dezembro de 2023 | 06:30
 
 
Férias escolares significam crianças cada vez mais tempo em frente às telas? Foto: DragonImages/iStockphoto

Para alguns, ele é um jogo de 3.500 anos criado no Egito; para outros, é essencial na hora de realizar postagens nas redes sociais. Em tese, o mesmo ícone, mas que recebe funções e até nomes diferentes. Quando o idioma muda e uma nova geração se apropria, o “jogo da velha” vira hashtag. É justamente para diminuir a distância entre esses mundos que têm o poder de separar pais e filhos, adultos e crianças, professores e adolescentes, que a psicóloga e palestrante Lícia Assbú sugere o retorno a atividades triviais, carregadas de comprometimento. 

“Brincadeiras simples como ‘jogo da velha’, adedanha, desenhos e a leitura de livros ajudam a despertar o desejo por uma interação maior”, afirma Lícia, pesquisadora do tema “Consumo de telas na infância” e autora do livro “Desconecte”. Ela se refere ao desafio que as famílias contemporâneas enfrentam em relação a crianças submetidas, como todos nós, a uma sociedade cada vez mais conectada, em que o consumo excessivo de telas pode representar um risco tanto para a saúde física quanto emocional, ainda mais no período das férias escolares.

“Nem sempre os pais também estão de férias, e aí que mora o perigo. Em alguns momentos, podemos usar as telas como recurso, desde que estejamos ao lado das crianças, acompanhando com as travas necessárias, e não se ultrapasse os limites pré-estabelecidos pela Sociedade Brasileira de Pediatria”, que, entre outros pontos, prevê a ausência de telas durante as refeições e de uma a duas horas antes de dormir. A palavra-chave utilizada pela psicóloga é “criatividade”. O contato com a natureza, por exemplo, é apontado como um natural regulador emocional para o humor das crianças.

Limites

É quase proverbial a constatação de que o caminho mais fácil hoje pode representar uma dificuldade maior adiante. “Quando deixamos de nos relacionar com as crianças, elas começam a preencher o vazio da nossa ausência com as telas. Pode parecer cômodo atender às demandas das crianças dessa maneira. Mas a falta dessa interação vai resultar em uma criança que, pela exposição excessiva às telas, fica mais irritada e ansiosa”, diz. Outro aspecto essencial é a força do exemplo. “Não adianta falar para o meu filho sair da frente das telas se fico o dia inteiro conectado”, sublinha. 

A especialista afirma que a criança cria uma relação de desejo pelo objeto que detém a atenção dos pais. “Estar presente é o melhor presente. A relação ‘olho no olho’, permitindo o sentir, integrado de fato àquele momento. Claro que o tempo é importante, mas criar uma intimidade emocional é essencial”, sustenta Lícia. Com agendas cada vez mais lotadas, o impulso de colocar uma tela na mão do filho tem sido frequente, gerando “crianças que não sabem mais brincar e se relacionar com outras se não for do jeito delas”. 

Esse egoísmo que perpassa toda uma sociedade individualista é especialmente cruel com os pequenos. “Quando as pessoas se entregam totalmente às telas, elas abrem mão do mundo real e perdem a oportunidade de aprender diversas habilidades socioemocionais, que têm a ver com saber sentir e entender o sentimento do outro, e as crianças precisam dessa empatia”, complementa. 

Cuidados

“Não quero jamais vilanizar as telas, até porque sabemos que a habilidade no uso de tecnologias já é requerido hoje, que dirá no futuro”, pontua a entrevistada. No entanto, é preciso buscar o equilíbrio. A alienação do mundo real, ao se tornar preponderante, pode causar efeitos perversos sobre crianças e adolescentes, que vão desde “a impulsividade do agir sem pensar” até “sedentarismo, inabilidade social, instabilidade e regressão emocional, problemas de visão e posturais, isso sem mencionar o risco dos conteúdos impróprios”. 

Lícia considera que, no mundo atual, deixar uma criança com um tablet ou celular na mão sem supervisão é o mesmo que abandoná-la à própria sorte na rua. “A internet é um lugar público, com todos os perigos, ou até mais, do que na rua”, alerta. No Brasil, uma proposta do deputado Orlando Silva, do PCdoB, almeja regulamentar esse universo amplo das plataformas digitais e das redes sociais. Em agosto, a União Europeia aprovou uma legislação que obriga as big techs a melhorar o controle sobre o conteúdo que elas disponibilizam. 

Lícia traça uma diferença entre o uso de tecnologias por crianças e adolescentes. Na visão da psicóloga, o acesso às chamadas redes sociais, como Facebook, Instagram, TikTok, e etc., deve ser proibitivo às crianças. Com relação aos adolescentes, o ideal seria estabelecer um limite de tempo no uso dos aparelhos digitais, “respeitando a necessidade de validação externa” própria da idade, o que, neste caso, exige cuidado redobrado. “Na adolescência, a necessidade de pertencer a um grupo ganha relevância, e, se os pais não souberem quem é esse grupo, os riscos são muito maiores”, destaca a psicóloga. 

Contato

A lógica de utilizar filtros nas redes sociais e de não se reconhecer sem aquele mecanismo no mundo real, conduz inevitavelmente a um vazio, a uma falta emocional, com prejuízos à autoestima, por não se sentir amado. Nesse caso, é fundamental que o mundo digital não seja a única rede de apoio do adolescente. Para auxiliar os pais, Lícia indica a leitura de “A Geração do Quarto: Quando Crianças e Adolescentes nos Ensinam a Amar”, do professor universitário Hugo Monteiro Ferreira, publicado em 2022. “O livro aborda a realidade de adolescentes que vivem trancados dentro do quarto e buscam informações na internet, que pode ser o pior lugar”, informa. 

Segundo Lícia, os adultos precisam entrar no mundo dos adolescentes, criando um interesse genuíno pelas séries que eles assistem, pelas músicas que ouvem, e etc. Desta forma, teriam uma confiança maior para compartilharem medos e curiosidades inerentes à essa fase de descobertas da vida. “A melhor forma de equilibrar o uso das telas é investir na relação. Se pais e filhos tiverem momentos de qualidade juntos longe das telas, elas podem ser usadas, seguindo parâmetros como limite de tempo e conteúdo”, salienta.

Lícia ressalta que, como seres sociais, nossas conexões cerebrais são desenvolvidas por meio das relações humanas reais. “Precisamos disso, é inato. A criança prefere naturalmente a presença do pai e da mãe às telas. Se ela tiver esse contato íntimo, próximo, interessado, não vai ter a necessidade de se abstrair do mundo real com tanta intensidade, e as telas serão meras coadjuvantes”, garante.