Sem Gustavo Kuerten, Larri Passos não seria nada. Ele sabe disso e não esconde tal afirmação. O ex-treinador do melhor tenista brasileiro em todos os tempos hoje aproveita a vida nos EUA ao lado das filhas, dentro de projeto em uma academia que confiou na sua filosofia. 

Considerado o melhor técnico do mundo em 1997, ele fala, em entrevista exclusiva, da importância de Guga na sua vida, da função positiva do treinador no contato permanente com um atleta, do câncer que enfrenta há dois anos, do convite para morar na china e do projeto para escrever sua autobiografia. 


Técnico de tênis é uma função diferente de treinadores de outras modalidades, uma vez que aparece menos? É uma função difícil, é preciso ter um grande controle mental, ser forte nesta parte psicológica. Você acorda cedo e já vai tomar café com o jogador, precisa motivá-lo o tempo inteiro. O que se vai receber em troca é muito pouco. Sempre me privei de muitas coisas para ser forte mentalmente. Nunca quis ser a estrela, isso quem faz é o jogador. O técnico precisa estar preparado para isso, ser humilde, não ter o ego grande. Ele está ali para transformar o atleta em uma estrela, em um vencedor, tem que esquecer dele mesmo. Isso é muito importante. 

Qual o tamanho da importância do Guga na sua carreira? O Guga foi o cara que me colocou no cenário mundial do tênis como treinador. Se não fosse por ele, nunca teria recebido o prêmio de melhor técnico do mundo. Ele me fez chegar em um patamar muito alto. As dúvidas que ele tinha quando era jovem me fizeram investir na sua carreira. Ele me colocou desafios inéditos. Eu já trabalhei com muitos jogadores antes dele, com diferentes personalidades. O Guga fez me acreditar na minha capacidade de colocá-lo no topo, algo que eu buscava há muito tempo. Agradeço tudo que ele fez por mim, por mais de uma vez falou após vencer um torneio que eu era seu guru, seu irmão e seu pai. É algo emocionante, eu não seria nada sem ele. Quando comecei a trabalhar com ele, já tinha uma boa estabilidade de vida e isso me proporcionou a investir no seu tênis. 

Qual a principal missão de um treinador de tênis ao comandar um atleta dentro de um esporte individual? Parte psicológica, às vezes, é o mais importante a tentar melhorar no atleta, passando confiança, etc? A parte principal de um técnico de tênis é saber conviver com o jogador e ser o seu mentor. É preciso buscar conhecimento, isso é muito importante. O treinador precisa se tratar, tirar as coisas negativas de dentro dele para poder estudar a sua personalidade e ser um bom profissional. Fiz isso a partir de 1994, passei a me estudar interiormente para melhorar meu aspecto mental e psicológico. Era uma busca para acreditar mais em mim. Estudei neurolinguística, são fatores que os treinadores precisam investir. Muitas vezes, eles se acomodam em buscar conhecimento. Desde que eu comecei a sonhar com o mundo do tênis, em 1979, fui para os Estados Unidos em busca de investir em mim mesmo. Essa parte psicológica ajuda a usar as palavras certas no momento correto, indicar para o atleta a parte positiva do que ele fez em quadra. Se você entrar com a parte negativa antes, você vai destruir a mente do jogador, é importante ter isso claro na cabeça. A mente é a coisa que mais vai fazer diferença, desde o princípio com seis, sete anos. Sempre falo com os professores que eles precisam criar palavras positivos o tempo inteiro na cabeça do jogador. 

O que percebeu do Guga quando o conheceu? Era possível imaginar que ele chegaria tão longe? Eu jamais imaginava que ele se tornaria o melhor tenista do mundo. Quando o conheci, ele tinha 14 anos, ele todo desengonçado, tive que ajustá-lo, ele estava muito longe dos concorrentes. Falei com ele que em seis meses ganharíamos dois anos. Ele estava em um patamar distante, eu foquei e ele acreditou. Fomos vencendo etapas. Depois dos seis meses juntos, entramos com a parte técnica. Tive que fazer muitas mudanças no seu jogo, trabalhar sua alto confiança, fazê-lo acreditar que poderia chegar longe. Com 15 anos, fomos pra Europa, foram quatro meses em que seu jogo mental foi muito fortalecido. Ele viu o mundo lá fora na Europa, o mundo do tênis, o glamour de Roland Garros, dos torneios grandes. Dei a ele essa abertura. Com 18 anos, era a hora de atingir novo patamar. Antes de 1994, era só investimento, uma promessa para o pai dele de que eu o treinaria. Foi só aí que percebi, de verdade, que dava pra ganhar uma grana em cima dele (risos). Foi uma transição legal, a gente dava muita risada e se divertia bastante. A transição veio sem muita pressão e loucura, ele conseguiu ser um jogador feliz até o final da sua carreira. 

Transição entre juvenil e profissional é o momento crucial na carreira de um jogador? O que faz a diferença para se ter sucesso nesta hora? Eu divido o tênis em algumas partes. A primeira é a da transição, precisa ser bem feita, quando se introduz a formação dos golpes, a técnica quando ainda é criança é algo fundamental. Depois a segunda parte, de formação super importante entre os 10 e 15 anos, quando a parte técnica e mental começa a aparecer, assim como a parte tática e de movimentação. É hora de começar a competir em um nível mais forte. Entre os 16 e 20, 22 anos vem a terceira parte. A transição hoje é mais longa, mas com 15 anos muitos já estão jogando torneios internacionais. É um outro momento relevante, quando se precisa trabalhar o contexto positivo, de fazer o jogador acreditar para ele tomar as decisões corretas. É importante fazer um bom calendário e tentar pagar o preço. Se o jogador não quiser pagar o preço, não vai chegar a lugar algum. Estamos com um círculo legal de jogadores que estão vindo bem, mais maduros. Acho que vamos ter um brasileiros de sucesso, ganhando um Grand Slam em cinco anos. 

Relação de treinador de tênis com atleta é algo parecido com os duplistas, com a relação pessoal também sendo importante para bons resultados?  A relação do técnico e jogador é muito importante, eles passam, às vezes, 18 horas juntos, ficam lado a lado desde o café da manhã até a noite. Constrói-se uma relação super especial, acho que no feminino mais ainda porque as oscilações emocionais são maiores. Tem situações em que um jogador aparece com um problema e você precisa ter a solução em duas ou três palavras. Você tem que estra sempre pronto, com algo mentalizado para entrar e desvendar aquele nó que está na cabeça do jogador. Quando o Guga perdia, eu sempre dizia que ele estava indo bem, falava pra gente seguir firme, que daqui a pouco a hora ia chegar. Se ele tivesse perdido quatro ou cinco partidas em um mês e eu falasse que iríamos desistir, ele não teria virado o jogador que virou. O tempo precisa colocar o jogador pra cima a todo momento, o treinador entra desde a parte física e mental, essa questão psicológica é muito importante. Ele tem que estar preparado para algumas 'bombas'. Às vezes, o jogador acorda e vai soltar uma 'bomba' pra cima do treinador, dizer que não acredita mais no seu potencial e é preciso saber lidar com essa situação. 

Maus resultados de um atleta de tênis, às vezes, não passa diretamente pelo treinador e sim pelo próprio atleta (treinador acaba 'pagando o pato' ao ser demitido em situações como esta)? Muitas vezes, o manager do jogador de alto nível coloca uma pressão muito grande em cima dele e isso acaba estourando no técnico. Se a relação entre jogador e técnico não for honesta, fica difícil. Ele pode querer trocar de treinador por causa de dois ou três maus resultados. Pode achar que um outro técnico tem mais experiência, eu nunca passei por isso. Nunca tive problema de relacionamento com atleta. Fui trocado em algumas situações por causa da pressão do empresário, dos pais. Eles acabavam fazendo a cabeça do filho. Eu sempre colocava meu cargo à disposição nas conversas com os pais, deixava isso bem aberto. 

O que dizer do trabalho da Ross Tennis Academy? O que percebeu de diferente neste projeto, acompanhando mais de perto, até pelo fato da sua filha fazer parte da escola? Meu contato com eles começou quando alguns vieram treinar na minha academia. Eles perceberam o trabalho intensivo, viram a paixão que eu tinha pelas crianças e atletas. Uma parte legal da minha academia era o tratamento familiar, o carinho que os professores tinham, além da abnegação e dedicação que tínhamos, algo que não era tão forte nos EUA. Eu sou um cara que quero o melhor o tempo todo, a cada milésimo de segundo eu acho que posso melhorar o golpe deles. Em uma semana, já voltavam diferentes. A proposta da escola é maravilhosa, existe uma parte acadêmica sensacional, minha filha estuda lá, mora nos EUA sozinha, acredito muito no projeto deles. Os juvenis têm a rotina de ir para a high school, estudam por quatro horas e vem treinar na minha academia por cinco horas. Fizemos isso com nomes como Bia Haddad, Tiago Monteiro, Orlando Luz, Tiago Fernandes, entre outros. Alguns viraram empresários, vários passaram por lá e se tornaram bem sucedidos. A proximidade com Nova York abre muitos horizontes para escolher uma universidade de qualidade. Nunca tinha colocado meu nome em nenhum projeto, é a primeira vez que desenvolvo algo parecido. 

Como foi receber a notícia do câncer de próstata e como tem encarado esta situação? Foi há dois anos, algo muito chocante. Eu sempre fui muito atleta, estava pronto para qualquer dor. A palavra câncer é muito dura, veio na minha cabeça: 'por que eu?'. Na hora falei pro médico que ia tirar esse bicho de dentro de mim, aquilo não me pertencia, pedi pra operar logo. Fiquei sozinho, tive que ser forte, minha esposa chorou muito. Saí da consulta e fui fazer minha meditação, falei pra mim mesmo: 'por que não eu? Vamos firme'. Depois levei para o lado de que nunca tinha cuidado de mim, sempre fui muito preocupado com os outros. Agora tinha esse desafio de cuidar de mim, hoje sou completamente diferente, dou mais risada, brinco com minhas filhas, corro, me divirto, assisto desenhos com elas. Quando tenho alguma dor, pensei que não é nada, que o câncer nem existe. Já faz dois anos que recebi a notícia, faço exame de seis em seis meses. Sigo motivado a querer fazer muito pelo tênis e pelo Brasil. É uma loucura quando se passa por um susto como esse. É um aviso de Deus pra cuidar mais de mim, uma lição de vida pra gente. Tem tanto gente no mundo que sofre e isso aconteceu comigo, que sempre fui sadio, tinha recebido tudo que queria. Acho que faltava esse desafio maior na minha vida. Estou muito bem e focado no meu trabalho, em estar com minha família, fazer o que amo. 

Por que não aceitou convite da federação chinesa para morar lá? Tive uma experiência fantástica por lá, tive um carinho especial dos chineses, fiz uma trabalho muito legal na academia em Tianjin. Passei meu conhecimento pra eles, fiz trabalho com uma jogadora que até hoje joga, está entre as melhores duplistas do mundo e foi bem na simples também. Eles queriam que eu me mudasse pra lá para trabalhar com o tênis masculino dos 15 aos 29 anos. Eu já estava morando na Flórida, foi uma proposta dura pra mim. Se fosse pra ir e voltar por três semanas, eu continuaria. Mas teria que abrir mão do meu green card, minhas filhas já estavam adaptadas à escola americana, hoje elas são bem americanas nesta parte de educação. Teria que largar tudo. Se eu fosse solteiro e tivesse 35, 40 anos, já estaria lá. Mas hoje não, quero me dedicar mais á minha família, ficar mais perto delas, foi a melhor decisão que tomei. Elas estão felizes, se desenvolvendo dentro de uma outra cultura. O fator financeiro não é o principal da vida, o foco é estar feliz, com a família, fazendo o que se gosta. Mas a China me proporcionou uma experiência fantástica, sigo com as portas abertas por lá. Não quis aceitar por causa da família. 

Ainda pensa em escrever um livro contando sobre sua trajetória? Muitos me perguntam isso. O tempo vai passando e seguem me questionando. À noite sento e tento refletir sobre meu passado, minha vida e carreira, passa um filme grande na cabeça. Essa autobiografia seria legal, já li memórias de pessoas como Neruda e Ford, aprendi muito com pessoas mais velhas. Ainda sou jovem, tenho apenas 62 anos, tenho muito pra dar e aprender. Sem dúvida, será um projeto legal. Mas, a curto prazo, não pretendo escrever um livro. Vejo jovens com livros publicados no Brasil, mas acho que ainda falta algo pra chegar lá. Já plantei árvores, tive filhas e fiz um número um do mundo. Vamos com calma que a hora do livro ainda vai chegar.