Ewerton Martins Ribeiro é escritor, mestre e doutor em literatura, servidor público federal e jornalista da UFMG

Conforme dá conta uma planta de 1958, o bairro Pindorama adentrou a década de 1960 já com as suas primeiras ruas demarcadas, em loteamentos que seriam lentamente ocupados nas décadas seguintes. Conto essa história no livro "Pindorama", que será publicado pela coleção BH. A cidade de cada um ainda neste ano. No entanto, naquele tempo, os morros que circundavam a região e demarcavam os limites da cidade ainda eram feitos sobretudo de matas e caminhos de burro na maior parte do seu território, como fazem saber o mapa de Belo Horizonte de 1970 e aerocartas de 1972.

Com efeito, até já se via umas casinhas ali, outras aqui, mas de resto as encostas estavam tomadas simplesmente por pastos, bosques, nascentes e plantações: na prática, o bairro ainda não tinha chegado ali. Foi mesmo com a inauguração do aterro que essa parte mais elevada da região passou a receber um fluxo migratório verdadeiramente significativo — significativo e descontrolado.

Nos anos 1950 e 1960, os primeiros migrantes haviam chegado à região do Pindorama vindos do interior, com foco em construir lentamente as suas casas em lotes padronizados, comprados com custo. Diferentemente, os migrantes de agora chegavam ao bairro vindos das áreas adjacentes à região, como os bairros contíguos de Contagem, sem posses nem terra alguma, apenas com o desesperado sonho de encontrar um modo de garantir a vida sua e dos seus, fosse onde fosse.

Eram, portanto, uma gente ainda mais pobre que aqueles já pobres migrantes iniciais. Agora, estamos falando de pessoas que se achegavam às veredas vizinhas ao aterro recém-inaugurado na esperança de, no garimpo dos restos da sociedade abastada, encontrar os recursos para construir seus barracos e simplesmente se alimentar. Buscavam, literalmente, encontrar no lixo os mínimos recursos para sobreviver.

Dado esse contexto, não é de se espantar que remonte aos anos que se seguiram a rápida emergência da Vila da Paz, a favela do Pindorama (oficialmente, ela se chama Vila Coqueiral, mas os moradores da região usam mais os nomes “sociais” de Vila da Paz e Pé de Vento para se referirem a ela, como é o meu caso). Segundo a ONG Favela é Isso Aí, o grande levante de barracos da Vila da Paz ocorreu em 1979, ano em que o aterro engrenava como destino dos resíduos produzidos pela cidade, em razão do crescimento e da consolidação da SLU, que havia sido criada em 1973.

Ali, lona, madeirite e latão eram encontrados para serem usados na construção dos barracos, nesse ciclo final dos anos 1970. “De acordo com os moradores mais antigos, o terreno da vila foi demarcado rapidamente: às vezes a pessoa chegava à noite, demarcava um espaço e por lá já ficava”, registram os pesquisadores da Favela é Isso Aí. Desses novos moradores, eles lembram, de fato “muitos se alimentavam da comida no lixão”.

Para muitos desse “Alto Pindorama”, o lixão sempre foi então uma fonte regular de alimento — seja pelo trabalho de garimpo feito nos restos já depositados na terra assentada, seja pela parceria da nossa comunidade com os lixeiros. Ainda hoje, na região, há famílias que vivem da doação de cestas básicas e de auxílios locais e governamentais.

Morei no bairro da minha primeira infância, no início dos anos 1980, até meados da primeira década do presente século. Na minha juventude, não canso de me lembrar, era comum que os lixeiros reservassem, para repassar aos moradores mais carentes do bairro, os produtos alimentícios vencidos que coletavam nos mercados e nas indústrias que atendiam: leite, biscoito, farinha — mantimentos, de modo geral. E era o caso, por exemplo, dos famosos iogurtes, lembrança de dez entre dez dos meus amigos de infância.

Esses eram produtos na véspera de vencer ou vencidos, mas normalmente com poucos dias. Às vezes impróprios apenas para a venda, mas às vezes também para o consumo. E então as pessoas cercavam o caminhão, recebiam esses produtos e distribuíam pelo bairro, para as famílias mais necessitadas. Os primeiros iogurtes que a minha turma de infância tomou na vida vieram todos do lixão. São as histórias pouco ou nunca contadas da nossa cidade, a grande capital republicana do país.

Hoje, fora os bairros formais, a área do aterro é circundada por quatro comunidades, todas em geral ainda muito pobres e precarizadas: o Conjunto Jardim Filadélfia, no nordeste do aterro (também chamado de “Buraco de Cobra”), que surgiu do desmembramento das áreas e fazendas que seriam ocupadas por ele; a Vila Califórnia, no leste, chamada de “Sovaco das Cobras”, também fruto daquele desmembramento; o Conjunto Novo Dom Bosco, que fica ao seu lado, pequenininho; e a Vila da Paz, favela que, hoje, integra formalmente o Pindorama, situada em sua parte mais alta.

É interessante notar como, em razão dessa relação, todo lixeiro de Belo Horizonte sempre integrou, em alguma medida, também a população dessas comunidades, a população dos bairros do entorno do aterro, mesmo sem serem necessariamente moradores. Essas sempre foram comunidades tentando se proteger e se salvar, e para isso elas sempre puderam contar com o auxílio dos lixeiros, os anjos da guarda dos mais pobres da cidade, na ausência de um poder público verdadeiramente transformador.

Enquanto isso, o aterro crescia, as favelas de seu entorno cresciam: Belo Horizonte crescia, cada vez mais precarizada, em sua relação centro-periferia. E cada vez produzindo mais lixo.

Uma vida inteira junto ao lixo

Em razão da localização do aterro e de suas portarias oficiais, situadas uma na parte alta do Pindorama, outra na BR-040, o bairro em que vivi toda a minha infância e primeira juventude sempre foi a região por excelência para a sua observação e experiência — a experiência da vida junto ao lixo e no caminho do lixo. Para todo citadino médio, a experiência da vida cotidiana é a experiência de se apartar do lixo; nos demais bairros da cidade, mal o produzimos, já damos jeito de tirá-lo de nossas vistas, empurrá-lo para trás de um biombo real ou virtual, entregá-lo para que alguém o tire logo de nossas vidas e vistas.

Apesar de naturalizada, essa é uma prática intrinsecamente higienista, própria da postura elitista do Estado capitalista, em que o termo higienismo se revela perversamente ambíguo. Ora, um dos biombos de nossa cidade era justamente o meu Pindorama.

“Ser Pindorama”, então, sempre foi, para nós, moradores do bairro, tentar fazer, de tudo isso que não interessa mais à vida da cidade e que ela se apressou em esconder e empurrar para longe de si, algo redivivo, revivificado pelos e para os que vivem em suas margens. Ser Pindorama era fazer, do que não prestava para a cidade que importava ao poder, algo que prestasse para aqueles da cidade a quem não era oferecido mais nada, apenas o lixo — nem mesmo o pleno pertencimento, senão a função de biombo para o kitsch moderno.

A verdade é que, para a Belo Horizonte ilustrativa do Brasil República que se erguia e louvava no avançar de sua estruturação ao longo do século 20, o urbanismo (mesmo o mais supostamente progressista, mais supostamente “inclusivo”) sempre fora um dispositivo de configuração e manutenção das estruturas de classe; um dispositivo da sedimentação dessas estruturas. Mas essa é uma noção muito pouco percebida por quem sempre pôde, no instante seguinte à produção do seu lixo, empurrá-lo para trás de um biombo e esquecer que ele existe. Olhemos por um instante, pois, para trás do biombo, para notar o que ele nos revela, pela voz da ONG Favela é Isso Aí:

— A primeira melhoria feita na Vila da Paz foi a instalação da energia elétrica, ocorrida apenas no recente ano de 1984. Se a Copasa começou a atuar na parte baixa do Pindorama nos idos dos anos 1970, na esteira da oficialização do bairro pela prefeitura, as redes de água e de esgoto só foram alcançar o alto do morro ali pelos idos de 1986, 1988. O calçamento dos becos, por sua vez, também só seria iniciado em 1990, e mesmo assim, em regime de mutirão, porque se a população fosse esperar o poder público... Em 1999, quase no século XXI, “finalmente” começavam a chegar os telefones.

Aterro sanitário: solução (in)adequada

Naquela reportagem sobre o advento do aterro sanitário, publicada em 1978, o "Jornal de Casa" dava voz, entre os diferentes discursos que buscavam dourar a pílula da novidade que se instalava na região Noroeste, ao divertido argumento de que “no lugar do aterro, em vez de urubus, ratos e baratas ou moscas, porque o lixo é coberto por terra tão logo chega, há muitas pombas”. Quando comentei sobre isso com meu amigo de bairro Waldeir Eustáquio dos Santos, que sempre morou na fronteira do lixão e circulava matreiramente por dentro dele em sua infância, ele quase caiu da cadeira de rir — de rir e de raiva. “Qual a chance!?”, o homem bradou, revoltado.

Doutor em Relações Internacionais e coordenador do curso de Serviço Social da PUC Minas, onde é professor, Waldeir se sentiu na obrigação de repisar o óbvio: o que tinha e sempre teve era mesmo muito rato, mosca, barata, larva, ora — isso e um sem-fim de urubus, claro. Como poderia ser diferente?

Essa anedota, que eu e meu amigo contamos um ao outro rindo sempre que lembramos de nossa infância, é uma ilustração desse que é um dos mais perversos mitos existentes sobre os aterros sanitários. Qual mito? O de que o soterramento tratado do lixo, por ser o que de mais avançado tecnológica e ambientalmente há para a destinação a ser dada para os rejeitos que não podem ser aproveitados na reciclagem, impede que ele se exponha ao sol e à chuva, aos vermes e aos animais — em suma, impede que ele prejudique o homem e o mundo.

De fato, existe essa crença de que o aterramento impede que o lixo feda e fervilhe, escorra e evapore, peide e contamine — transforme-se naquele conhecido caldo azedo que desemboca nos rios ou, condensado, flutua no vento, de modo a alcançar as casas e as almas de todos nós. Trata-se de uma falácia, claro.

Se o aterramento sanitário é considerado ainda hoje uma solução “adequada” para os resíduos que restam de nossa vida moderna, isso precisa ser sopesado criticamente. Em termos brutos, o argumento diz mais do primário estágio em que estamos do nosso entendimento do que sejam a preservação humana e a preservação ambiental (que, no fundo, são a mesma coisa, como nos alertam pensadores brasileiros indígenas e afrodescendentes, como Ailton Krenak e Nêgo Bispo) do que da efetiva sanidade do meio ambiente e das pessoas que subsistem no entorno desses equipamentos sanitários.

Aterros não são “adequados”; são apenas a solução “menos pior” encontrada no contexto neoliberal capitalista em que vivemos. Esse contexto não abre mão do consumo perdulário que o sustenta; portanto, não permite a pactuação do enfrentamento do problema real, que é o lixo em si mesmo, e obriga-nos a seguir debatendo a sua mera destinação.

Essa, pois, é a configuração da república moderna, que tem em Belo Horizonte um seu estado da arte: um díptico centro-periferia em que à periferia sempre foi historicamente e segue sendo atribuída a sagrada responsabilidade de fazer a depuração objetiva e subjetiva dos putrefatos humores produzidos pelo centro sôfrego. Humores que, curiosamente, originam-se sobretudo nesse centro, em sua natureza de consumo tão vocacionada para a produção excessiva de chorume residual.

E assim configura-se a periferia, na perversa natureza citadina da república moderna: ela é a força depuradora dessa infinita impureza produzida pelo centro. Disso, então, decorre a dificuldade que a cidade tem de abrir mão dessas margens alienadas do sonho e permitir que elas se emancipem dessa sua condição. A rigor, a cidade e seu centro metropolitano, cerne da fruição capitalista neoliberal, não podem de modo algum permitir isso. Afinal, as periferias são o seu fígado indispensável (o fígado ou os rins, a depender do nível de perversão dos gestores da ocasião), e sem seu fígado o corpo citadino não vive.

Assim, pois, hierarquiza-se a cidade pretensamente republicana. Nos centros, residem aqueles que, em benefício próprio e dos seus, e em prejuízo da coletividade social, seguem produzindo sobremaneira o lixo (de toda espécie, inclusive o cultural). Nisso, contaminam a cidade do centro para fora, em força centrífuga, sem praticamente nada agir pessoalmente no tratamento desse lixo ou na mitigação da sua produção, antes o contrário. Já nas margens, opostamente, sobram aqueles a quem se atribui, à revelia de seus próprios interesses, a responsabilidade de processar, em prejuízo próprio, essa inflamação contínua e crescente da cidade, tendente ao infinito, depurando-a para que ela alcance novamente as condições de ser plenamente usufruída.

Ora, e usufruída por quem? Outra vez por aqueles que mais produzem a sua contaminação, os metropolitanos centrais.

Os tantos problemas urbanísticos, sociais e ambientais que se desdobram do entendimento dos aterros sanitários como solução “adequada” para o problema dos resíduos produzidos pela vida urbana moderna nos conduzem sempre a essa mesma e desde sempre ignorada conclusão. Qual conclusão? A de que a única forma de lidar a sério com o problema, como os adultos que somos (ou ao menos queremos ser), é abandonar de vez a pretensão estúpida de que, com o devido esforço tecnológico, conseguiremos fazer o nosso lixo sumir sem deixar consequências. O próprio aspecto “passe de mágica” que reveste essa hipótese é revelador do seu caráter infantiloide.

Em vez de seguirmos tentando tratar o lixo produzido “de forma cada vez melhor” (há algo de particularmente perverso na lógica “sempre é possível melhorar” da cultura positivista do dito “progresso”), é hora de, como sociedade, concentrarmos os nossos esforços (inclusive tecnológicos) em pararmos de produzi-lo, sobretudo nessas escalas, nesses registros, nesses materiais. Sobretudo nesse sistema de sociabilidades perversas e intercâmbio de responsabilidades, esse sistema de castas.

É preciso ter clareza: não existe outra solução, não existe outro caminho — não existe outro mundo, outro universo. Toda conversa que sugere ser possível que venha a existir solução tecnológica para a questão (conversa que vai do tratamento dos resíduos às mais estúpidas missões espaciais) é derivativa, pois, para se sustentar, precisa contornar o problema principal. Na prática, essa é uma postura que adia o enfrentamento do problema real, fomenta o seu crescimento e segue transferindo as suas consequências para as gerações seguintes (ou, de modo mais comezinho, simplesmente para os mais pobres de cada geração atual).

Parar de produzir lixo, pois: essa é a única solução. E, em verdade, não estaríamos inventando a roda. Era como viviam os filhos do sol — o “homem natural”, em sua consciência participante. É hora de voltarmos aos nossos autóctones para aprender. Simplesmente sentar e aprender. Quanto ao aterro... no terceiro e último artigo desta trilogia, conto do parque que um dia a prefeitura prometeu (e até hoje não cumpriu) construir em seu lugar.

 

1º artigo da série: 50 anos do aterro sanitário de Belo Horizonte

3º artigo da série: Aterro de Belo Horizonte: o eterno adiamento do fim