Mariana Cotta é advogada, pós-graduada em direito penal e processo penal pela Escola Paulista de Direito
Quando da derrota de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas, em 6 de janeiro de 2021, um grupo de desequilibrados invadiu o centro legislativo dos Estados Unidos, com a intenção de interromper a sessão que confirmaria a vitória do presidente Joe Biden com alegações fantasiosas de fraudes eleitorais e totalmente incitados por discursos bélicos e postagens em redes sociais do então presidente. De forma efetiva, morreram cinco pessoas em decorrência da invasão.
Dois anos após esse episódio, situação com grande similaridade ocorreu no Brasil em 8 de janeiro de 2023, quando manifestantes golpistas invadiram as sedes dos Três Poderes da República. Tais quais os americanos, também motivados por discursos do ex-presidente Jair Bolsonaro, que afirmava ter havido fraudes nas urnas eletrônicas no ano anterior. Cerca de 4.000 pessoas caminharam da frente do Quartel-General de Brasília até a Praça dos Três Poderes, ultrapassaram barreiras de segurança, agrediram policiais, adentraram os palácios e destruíram móveis, vidros e obras de arte. Foram efetuadas prisões em flagrante de 1.418 pessoas.
Em ambos os casos, mais que exemplos de um problema enfrentado pelas democracias, que é a tentativa de golpe de Estado ou de abolição violenta do Estado democrático de direito, denota-se como o direito penal de inspiração democrática não pode continuar a operar como se os golpes de Estado fossem eventos folclóricos e anacrônicos.
No caso do Brasil, não há criminalização para incitação, conspiração e autogolpe. Ao deixar de criminalizar tais atos, o sistema penal brasileiro revela-se omisso onde deveria ser protetor, ingênuo onde deveria ser vigilante e leniente onde deveria ser intransigente.
Na legislação argentina, por exemplo, há a criminalização de condutas não violentas de cessão de poderes extraordinários por membros do Legislativo ao Poder Executivo, o que não existe no Brasil.
A gravidade de tal lacuna reside em, por exemplo: caso os membros do Congresso Nacional se articulem para aprovar medidas que garantam a um presidente da República poderes para que se perpetue no poder sem a realização de eleições, não haveria punibilidade da conduta por ausência dos requisitos típicos da violência ou grave ameaça.
A nova legislação brasileira sobre o tema ainda é bastante tímida na tutela da ordem constitucional, e o legislador brasileiro foi menos rigoroso com as condutas de tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado democrático de direito que a maioria dos países ocidentais (o golpe de Estado no Brasil está tipificado no art. 359-M do Código Penal brasileiro, sendo configurado pela conduta de “tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça”). Somente a Itália apresenta uma sanção inferior à do Brasil. Todos os demais impõem penas que podem chegar a mais de oito anos de prisão.
A ausência de previsão de punição para a instigação e para os atos preparatórios, somada à ausência de tipificações para o impedimento ou restrição dos exercícios dos Poderes constitucionais, também constitui lacuna perigosa após tal episódio marcante na democracia brasileira, que precisa ser suprida o quanto antes.
Para as tipificações existentes, as penas previstas, além de ingênuas quando comparadas às de demais países ocidentais ou mesmo àquelas por outros crimes no Código Penal brasileiro, fragilizam a tutela penal do Estado democrático de direito, o que é fundamental para garantir a estabilidade política de qualquer país, em especial daqueles que carregam em sua história rupturas violentas.