A Academia Brasileira de Letras esperou 70 anos para, em 1997, receber a primeira imortal: Rachel de Queiroz quebrou o monopólio masculino, mas não rompeu a tradição cultural que caracteriza o Brasil como parte do mundo ocidental – lógico, desenvolvimentista, antropocêntrico em relação à natureza.
Da mesma forma, apesar da origem racial do fundador Machado de Assis, a entrada de Domício Proença Filho, em 2006, representou a mudança no monopólio da cor da pele dos acadêmicos. Embora Gilberto Gil tenha representado o marco na abertura da ABL para além da literatura, o que se percebe é que não houve ruptura no arquétipo cultural da Academia. Quebrou monopólios machista e racial, mas não rompeu a cosmovisão eurocêntrica: continuamos nas caravelas.
Neste abril, a ABL fez a ruptura ao receber Ailton Krenak, que leva consigo uma nova forma de pensar, que agora a ABL aceita, legitima e enaltece, sem necessidade de abrir mão da visão tradicional da lógica ocidental. Com Krenak, a ABL recebe o pensamento mágico dos povos indígenas e quebra o monopólio da cosmovisão greco-romano-renascentista e iluminista.
Em 1985, assisti com emoção ao discurso de José Sarney assumindo a Presidência da República no lugar de quatro sucessivos ditadores militares. Foi um marco de transformação do autoritarismo à democracia, mas dentro da mesma lógica social, econômica e cultural. Ao ouvir o discurso de posse de Krenak, minha emoção foi de assistir à inclusão de um mundo cultural relegado por nosso pensamento tradicional: foi como descer da caravela e pisar na areia.
A faixa indígena na cabeça foi um símbolo da mudança. Mudou também ao substituir o discurso por uma conversa, como se estivéssemos sentados ao redor do fogo, ouvindo a fala de um contador de histórias de seu povo. Mudou sobretudo no conteúdo. Não mais o monopólio da linguagem escrita e do pensamento ocidental. Mostrou que aprendeu a ler, escrever, articular o idioma português para transmitir o pensamento de seu povo: na maneira alternativa de ver e entender a realidade.
No seu discurso, Krenak trouxe o que está em livros e poemas que ditou: o entendimento do mundo como uma realidade separada e o diálogo com o mundo do qual é parte física e espiritual. Na sua cosmovisão, Krenak não é um observador querendo explicar como funciona a natureza, ele é parte dela.
Essa é a mudança positiva que Krenak representa no pensamento, literatura, arte e lógica, sem perder a capacidade de falar com os demais acadêmicos. Usa a faixa, mas o fardão lhe caiu muito bem.
Uma ponte pode ser vista como caminho que une, mas também como estrutura que está nas duas pontas. Krenak é o outro lado e também a própria ponte. Sua entrada na ABL é um marco para todos nós.
Cristovam Buarque é professor emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação