A tentativa de golpe no final do governo Bolsonaro é um exemplo claro da farsa de certos gestos políticos que tentam repetir fatos históricos: ficam como ópera-bufa. O simples fato de o golpe ter sido tentado mostra a fragilidade da nossa democracia. Porque, depois de 40 anos, o regime democrático ainda não tomou medidas necessárias para vacinar as Forças Armadas contra o vírus golpista que a contamina desde o início da República.
Durante todo o período de 2019 a 2022, estivemos sob ameaça de golpe. Em nenhum momento as Forças Armadas deixaram de se imiscuir na política, dando respaldo ou se omitindo diante de manifestas intenções golpistas. O que nos salvou foram as pessoas físicas de alguns generais legalistas, não a estrutura da instituição, que continua a mesma, apesar dos 40 anos da democracia.
O único gesto de enfrentamento da questão militar foi a criação do Ministério da Defesa, pelo presidente Fernando Henrique. Mas adotou-se um nome sem adotar-se um espírito novo. O ministro é civil, mas a tropa continua sem respeitar os civis, até por nossos erros, privilégios, falta de espírito público, mordomias, corrupção.
Os ministros da Defesa não comandam as Forças Armadas em nome do presidente, apenas representam as três Forças junto ao governo. Nenhum dos presidentes da democracia pareceu liderar as Forças Armadas, somente conviver com elas como se fossem uma instituição separada da estrutura republicana. Nenhuma vacina democrática foi adotada para mudar o espírito das Forças Armadas.
Se não enfrentarmos a questão militar que pesa há décadas sobre a República, um dia vão dizer que a farsa foi a democracia, não a tentativa de golpe. Os sete presidentes civis e milhares de parlamentares passaram a ideia de temer a farda. Não se puniram os crimes durante a ditadura, não se modificou a formação dos soldados. A democracia que teme os uniformizados é fraca e sujeita às tentações de golpe. Agora, a operação de punição vem dos tribunais, não do Executivo ou Legislativo.
Pena que não seja apenas a questão militar. Apesar de seus avanços, a democracia brasileira não enfrenta estruturalmente a questão social: a pobreza e a desigualdade, o caos urbano, a concentração de renda, a violência, nem a última trincheira da escravidão, que é a desigualdade no acesso à educação. Também não enfrenta a questão econômica, baixa produtividade, custo Brasil, falta de competitividade; nem a questão republicana, abolição dos privilégios, distribuição de renda, estabilidade jurídica, fim da corrupção, reforma política.
O golpe na democracia decorre do golpe dado pela democracia ao não enfrentar as questões que a ameaçam diariamente, subliminarmente, discretamente e estruturalmente; até levar a tentativas como essa última, frustrada.
Cristovam Buarque é professor emérito da UnB e membro da Comissão Internacional da Unesco para o Futuro da Educação