A síndrome do “você sabe com quem está falando?” não é algo novo para os brasileiros, mas, diante do alastramento do coronavírus, a prática se torna um grande perigo para toda a população. Chamaram a atenção as imagens de um desembargador em Santos (SP) chamando um guarda municipal de “analfabeto” e ligando para o secretário de segurança ao se recusar a usar máscara e cumprir decreto municipal. Diante da repercussão, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assumiu as investigações do caso.
Antes disso, também correu o país a frase “Cidadão, não, engenheiro civil, melhor do que você!”, dita por uma mulher a fiscais no Rio de Janeiro quando ela e o companheiro foram abordados sem máscara num bar com aglomeração.
Esse comportamento reflete uma desigualdade social amparada no patriarcalismo e no patrimonialismo estruturais da sociedade brasileira. Heranças da era colonial, essas práticas levam a uma percepção distorcida do direito, que seria aplicado implacavelmente somente sobre aqueles mais distantes dos detentores do poder.
O elitismo é especialmente cruel quando se percebe que a pandemia é mais devastadora entre os menos abastados. Dados do IBGE mostram que mais de 50% dos infectados não têm instrução alguma ou, no máximo, o ensino médio incompleto e que sete em cada dez vítimas do coronavírus são pretos, pardos ou pobres. E isso não é uma coincidência, mas sim reflexo institucional desse movimento que vê como natural a segregação de parte da população a serviços de mais baixa qualidade.
Exatamente por causa dessa desigualdade não é o privilégio de quem oportunisticamente se arvora de “desembargador” ou “engenheiro” que deve ser maior, mas a responsabilidade de promover uma sociedade mais saudável e justa.