O pior do luto não é enfrentar as lágrimas, ou espantar a dor, ou suportar a enxurrada da culpa. Não ocorre na luta contra a insônia, na febre ou na noite turva do quarto, na mais completa solidão e desamparo.
Acontece durante os raros momentos de serenidade, paz e alívio, quando você acessa um estado mais próximo da alegria de antes, anterior à fatalidade.
Quando você quase é normal novamente. Quase abstrai a linha do tempo e não se lembra de tudo o que houve — do enterro, das lacunas e do desaparecimento sumário de alguém importante em sua rotina.
O luto mais nos abala diante da beleza.
Você não sabe se olha o mundo com os seus olhos ou com os olhos de quem partiu. A saudade tem dessas artimanhas do espírito: emprestar os olhos do morto. São faróis que vêm das sombras, luzeiros que brilham de longe.
Por algum motivo secreto, por alguma cumplicidade vivida junto, você desfruta da certeza de que aquele que se despediu gostaria de estar presente.
As experiências de antigamente geram parentesco com as atuais, criam vínculos e laços, dobrando o tempo, duplicando o tempo.
Você se arrebenta por dentro para ser dois, ou para ser ele mais do que você mesmo.
Admira um pôr do sol e raciocina:
— Como o ente querido ficaria feliz de ver isso.
Testemunha a família reunida no jantar e conclui:
— Como o ente querido ficaria feliz de estar conosco.
Avista uma carruagem vindo em cerração iluminada e recorda algo gótico na aparência do falecido:
— Como o ente querido vibraria com essa visão.
E é assim, com as alturas vertiginosas de uma serra, ou com a ponte de um arco-íris no horizonte, ou com uma chuva mansa que nos põe a rezar em silêncio.
Ou perante as etapas de consagração de amigos e parentes: batizados, aniversários, formaturas, casamentos.
Em paisagens e celebrações impactantes, na mais ardorosa exclamação da natureza, a ausência de uma pessoa torna-se majestosamente presente.
Onde a vida grita, o pesar sussurra.
As despedidas são reencenadas nas chegadas. A nostalgia é reencarnada nas vivências inéditas.
O fato de não estar pensando tragicamente nele faz com que ele surja inteiro e inusitado no meio dos seus contentamentos.
Não há como esquecer: os assaltos da saudade sempre nos pegam desprevenidos. Quando estamos esvaziados dos tormentos. Quando estamos em trânsito.
A falta emerge quando menos esperamos, quando menos controlamos as nossas emoções.
Talvez porque nos mostramos ligados ao universo de uma forma especial naquele instante, permitindo que se abra a porta da outra dimensão.
Os mortos sempre voltam. Sempre regressam. O que ainda não aprendemos é que eles habitam o nosso corpo. Pois conhecem como ninguém a matéria volátil do nosso coração.