Não sou o que mais dirige em casa. É Beatriz, minha esposa. Virei um motorista bissexto, um perigo no trânsito, uma temeridade ambulante. Só dou uma volta no final de semana, despertando buzinadas e protestos pela lentidão ou pelos reflexos demorados.
Finjo não ouvir as reclamações e sigo com meu ritmo de passeio, em meu casco de tartaruga.
Meu desespero aparece quando eu paro, não quando estou em movimento. Aí, o desespero é dos outros.
Sou o rei dos perdidos nos estacionamentos. Nunca sei onde deixei o carro.
Não guardo o número do pilar, muito menos o setor. Lá dentro, no subterrâneo, é um labirinto de concreto. Não desenvolvi habilidades de Minotauro nem de Teseu para encontrar a saída.
Penso ter fixado a letra. Mas, após duas horas, o alfabeto me foge.
Não anoto por orgulho. Confio inutilmente na minha memória. Tanto que até hoje não faço lista para o supermercado e esqueço metade dos produtos.
Na saída do shopping, depois da refeição ou do cinema, digerindo a comida ou os diálogos do filme, não recordo onde estacionei.
Poderia protagonizar o remake de Perdidos na Noite. Trabalho de graça como sentinela, como vigia.
Circulo em vão pelas vagas. Meu relógio até pergunta se estou iniciando exercício físico. Deveria registrar os quilômetros percorridos. Venho emagrecendo sem querer. É meu aeróbico gratuito, minha esteira ergométrica emocional.
O que a minha esposa anda pelas lojas, eu ando pelo estacionamento.
Esgoto a bateria da chave apertando o alarme para o além. O braço levantado chega a ficar com câimbras. Nada de o carro piscar. A bateria não dura um mês, de tanto que me perco. E, quando pisca, não é o meu — é o de alguém partindo.
Quem me vê logo percebe que não faço ideia de onde está o carro.
Vivo no mundo da lua, pisando em astros, distraído. Pertenço ao time dos desligados, de quem não decorou nem a placa. Ou seja, não há como pedir ajuda.
Resta-me explicar que é um Honda HR-V Touring. A cor? Eu falo azul-marinho. Beatriz me corrige: azul egípcio. Nem isso sou capaz de assimilar.
Lembro que estacionei ao lado de um carro amarelo. Ou verde. Mas quem garante que ainda está lá?
Foi na ponta, nos fundos, no meio, perto da saída? Os dias parecidos se embaralham na mente, os erros semelhantes se acumulam nas sinapses. Concluo que talvez eu esteja confundindo com um evento da semana passada, quando enfrentei um dilema igual.
O pior não é isso. É descobrir que não tenho certeza do andar.
Ao extraviar o carro, sempre extravio um pouco mais da minha dignidade, da minha elegância.
Suporto o medo que jamais se confirma de ter sido furtado. Eu mesmo me assalto.
Nem preciso dizer que expira o tempo de tolerância do pagamento. Extrapolo os trinta minutos, sou obrigado a retornar para o prédio, procurar o guichê e começar tudo de novo.