FABRÍCIO CARPINEJAR

Os sapatos não morrem

Não se descarta algo que trouxe felicidade. Aquele sapato que foi atração de uma festa de casamento não será aposentado


Publicado em 05 de janeiro de 2020 | 03:00
 
 
 
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Se depender de Minas, os sapateiros não serão extintos.

As oficinas não perderam o seu valor e são santuários de devoção nos bairros.

As mineiras têm como hábito ressuscitar os seus sapatos. Levam os pares doentes de solas e de saltos para o conserto. Não jogam fora. Herdaram a mania esperançosa das mães e das avós e seguem com a freguesia da família.

Preferem pagar o remendo a caçar desesperadamente um similar nas vitrines. Como muitos modelos saem de linha, há um apego a determinado calçado que supera a dimensão material do preço, envolve o valor espiritual das lembranças.

Não se descarta algo que trouxe felicidade. Aquele sapato que foi atração de uma festa de casamento não será aposentado. Aquele sapato que serviu de detalhe para despertar um romance não será desprezado. Aquele sapato confortável como nunca, que parece que nasceu com os pés, não será esquecido. Nem é mais um mero sapato, porém parte definitiva do guarda-roupa, peça essencial do closet, integrante amoroso da família. Ele é compreendido como roupa para a vida inteira.

Busca-se alternativas para a sua reutilização. Às vezes pintar, às vezes colar, às vezes apagar riscos.

Qualquer mulher, mensalmente, separa uma sacolinha com o que precisa de reparos. O par tem direito a, no mínimo, duas reencarnações.

O que mudou foi o procedimento das sapatarias. Aquele conceito antigo de sapateiro com o martelo na mão e uma porção de pregos na boca terminou substituído por maquinários, baseados na colagem. O cheiro da cola não é tão forte no balcão. Não vicia mais ninguém na entrega e retirada dos materiais. A química é mais sofisticada e amena ao olfato, transformando a borracha em PVC.

As peças para arrumar são postas em caixinhas, com uma etiqueta com o nome da cliente. O procedimento profissional é igual a de uma lavanderia, para evitar enganos.

Existe ainda o cuidado para adaptação, com correções para pessoas que sofreram algum tipo de cirurgia e reivindicam padrões especiais.

Com a informalidade da moda, as mulheres não abrem mão do curinga, aquele produto que combina com as saídas mais formais e, ao mesmo tempo, cabe no dia a dia.

O que reforça o papel das sapatarias locais, diferente de outras regiões no país, é o uso criativo do vestuário, com a proliferação natural de brechós e valorização de figurinos antigos e retrôs. Tendências não desaparecem com as estações, são acumuladas. Todo mundo quer ser diferente e procura o acessório customizado.

Existe também o entendimento de que o couro é pele e depende de hidratação. Sapatarias funcionam como spas contra o ressecamento e cicatrizes, com o emprego de cremes e de proteção nos solados a prevenir desgastes.

Pela resiliência, já dá para perceber a vocação romântica e casamenteira da mineira. Não é porque algo estragou uma vez que ela pedirá o divórcio.

O maior contentamento dela não é consumir, mas salvar uma bota ou uma sandália, recuperando o brilho e o viço da primeira vez. Sente um prazer indescritível em exclamar:

– Está igualzinho a quando comprei!

A maior longevidade dos sapatos no país é em Minas Gerais. Brilham mais que o verniz, mais parecem estrelas espalhadas no chão.

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