Desde 1895, quando Belo Horizonte estava na metade de sua construção como nova capital republicana, Veneza inaugurava a Bienal que se tornaria o maior organismo cultural contínuo do planeta. Hoje reúne arte, arquitetura, cinema, dança, música, teatro e arquivo histórico. Em 1980, a arquitetura ganhou mostra própria. Em 2025, sua 19ª edição não é catálogo de formas, é cartografia de crises e respostas. Estive nela nesta semana e decidi que voltar sempre será uma meta de vida. É imperdível. É sensacional.
O título é manifesto: “Intelligens: Natural. Artificial. Collective”. O Arsenale abre lembrando que a arquitetura sempre respondeu ao clima. Da cabana primitiva às fundações submersas de Veneza, o ato de construir foi adaptação. Hoje a mudança climática não é previsão. É presente.
A primeira inteligência evocada é a natural. A metáfora dos micróbios mostra que a humanidade, no pico demográfico, precisa aprender a viver pós-crescimento em equilíbrio dinâmico. A Amazônia aparece não como floresta intocada, mas como paisagem moldada por séculos de ocupação indígena. Roma 2050 projeta o Tibre como capital global da biodiversidade. Nápoles reativa aquedutos subterrâneos como urbanismo ecológico. Bangkok cria telhados agrícolas, Nova York parques submersíveis, o Cairo torres probióticas, São Paulo museus que funcionam como usinas ambientais. Habitar é metabolizar energia, alimento e resíduos.
A segunda inteligência é a artificial. Um robô se pergunta se é consciente. Algoritmos calculam evacuações em Istambul pós-terremoto. Oceanos são monitorados como infraestruturas planetárias. Plataformas digitais planejam bairros zero carbono em processos participativos. Fluxos digitais reorganizam práticas de projeto, mostrando que a tecnologia não substitui o humano, mas amplia a capacidade de imaginar e planejar em tempos de policrise.
A terceira inteligência é a coletiva. É a mais política. Um vilarejo chinês é reativado como laboratório social. Mercados informais de Singapura são reconhecidos como comuns urbanos. Harlem é reinventado em um teatro de tijolos de Frida Escobedo. Uma escola na Tanzânia mostra arquitetura como cuidado social. No Arsenale, o percurso termina na água: a AquaPraça, plataforma flutuante de 400 m² construída em Veneza e programada para viajar até Belém na COP30. Objeto político e poético, espelho de marés e instrumento diplomático, conectando Veneza à Amazônia.
Nos Giardini, os pavilhões nacionais aprofundam o recado. Viena mostra o que significa tratar habitação como infraestrutura social. Desde os anos 1920, terra pública, tributação progressiva e superblocos equipados com bibliotecas, teatros e piscinas garantem acesso. Hoje 77% dos vienenses vivem em aluguel acessível. A cidade pratica planejamento de gênero desde os anos 1990. É o caso mais contundente de política habitacional como inteligência coletiva.
O Brasil se apresenta por outro caminho. Doze projetos mostram como a inteligência emerge em territórios vulneráveis. Em Afuá, a malha anfíbia. Em Salvador, a escada drenante. Em São Paulo, a ocupação Nove de Julho e o Sesc 24 de Maio. Em Belo Horizonte, o Habitat Encapsulado do Centro Cultural Lá da Favelinha, de Kdu dos Anjos, propõe envolver edificações já existentes em novas camadas arquitetônicas, criando legibilidade, dignidade e espaços coletivos. A favela surge não como ausência, mas como potência cultural e urbana.
A Bienal de 2025 demonstra que as três inteligências só funcionam juntas. A natureza ensina ciclos de adaptação. A tecnologia amplia a capacidade de projetar. A coletividade garante justiça social e enraizamento cultural. Separadas, são incompletas. Integradas, revelam caminhos para reinventar a vida.
E a Biennale é ainda mais. Também é cinema, e pude presenciar “The Testament of Ann Lee” no Lido, aplaudido de pé por 15 minutos. Essa intensidade confirma a escala única do evento, no qual artes se entrelaçam para pensar o presente.
A Bienal de Veneza não é inventário de formas. É laboratório planetário. Vai dos micróbios às metrópoles, das árvores às inteligências artificiais, das águas da lagoa às florestas da Amazônia. Expõe Viena como laboratório de estabilidade e o Brasil como oficina de improviso. Há muitas ideias aqui que podem inspirar nossas cidades. Minha vontade era que todas as pessoas envolvidas na construção do futuro urbano brasileiro pudessem vivenciar esse ambiente. Somando nossas energias às tantas experiências reunidas em Veneza, seríamos capazes de oferecer respostas concretas aos problemas das cidades do Brasil. Nada me parece mais poderoso para melhorar a vida das pessoas que nelas vivem.