Muitos católicos se perguntam se ir à missa é suficiente para quitar a obrigação com o Senhor, adquirir méritos e passaporte para o paraíso.
Quando era menino, pensava nisto, que as portas do céu passavam pelo cumprimento da obrigação dominical. Flagelava-me interiormente ao perder uma e ia correndo ao confessionário na segunda-feira. Em casa, minha mãe, católica fervorosa, cobrava notícias da minha missa, da igreja, do padre, da homilia e dos presentes. Conferia os detalhes dessa obrigação do “bom cristão” católico apostólico romano.
A missa antigamente era o encontro da comunidade. Lá todos se encontravam, escutavam o padre e se contavam. Ao domingo, depois do “ite missa est”, apresentavam-se os recém-nascidos e conferia-se o crescimento da prole numa silenciosa disputa entre mães corujas que nos obrigavam a colocar gravatinha, sapatos brilhantes e brilhantina nos cabelos indomáveis. Os pais aproveitavam, na saída, para se cumprimentarem e acenar aos fregueses com um sorriso mais largo. O clássico domingo se completava com o almoço gordo e uma sobremesa especial. E, a cada 15 dias, quando o time jogava em casa, a ida ao estádio para o jogo de futebol.
A missa “cantada” na igreja da Steccata, erguida no século XVI pelos sobreviventes de uma peste especialmente contagiosa, que varreu metade da população urbana, era também uma alternativa concorrida. Mais: com o charme dos Cavalheiros de Malta, que nesse templo têm sua referência ao lado do teatro Régio de Parma, um dos mais qualificados em música lírica do planeta. Em pleno berço de Giuseppe Verdi, o teatro emprestava cantores de seu “coro” exaltado pela excepcional acústica de sua arquitetura circular e um poderoso órgão alemão.
O defeito dessa missa era a interminável duração que selecionava em seus bancos os verdadeiros amantes da música lírica e operística. Havia também a missa do arcebispo dom Evaristo Colli, na catedral, e aquela mais esotérica no templo do Monastério Beneditino de São João, num cenário renascentista carregado do “hermetismo” do mestre Antonio Allegri da Correggio, debaixo da primeira cúpula pintada no mundo com a cena da Ascensão de Nosso Senhor Jesus Cristo contemplada em êxtase por são João e sua águia.
Também ali se encontra um dos melhores órgãos da Europa, magistralmente tocado por um monge, que já atraiu Luciano Pavarotti a se exibir sem cachê em dia de Páscoa. Tinha a missa na igreja de Santa Lucia, pouco mais que uma capela que atraia fiéis confiantes na poderosa santa dos olhos. Mas a “soçaite”, os grã-finos, se media na missa das 11h na igreja de San Vitale com toque de barroco emiliano, construída pela Confraternitá Del Suffragio sob a bênção de Margherita de Medici e das realezas europeias. Nessa não havia restrições ao desfile de moda e de beldades da cidade – na pequena pracinha, Ferrari e Bizzarrini disputavam as quatro vagas de carros disponíveis.
O rito litúrgico da missa, da comunhão de Deus, merece tomar muito mais que uma simples coluna, mas, como não há nada que o homem possa elevar para a sublimidade como mergulhar nas profundezas, as missas de que trato consideram as variações extremas. A missa começou nas catacumbas sitiadas pelos soldados de Nero, passou por cavernas e florestas, mas para mim, nas piores crises de juventude, a missa se dava na cripta da catedral de Parma, “Il Duomo”, entre lápides de eméritos fiéis da Idade Média sobre um chão de pedras permanentemente frias.
Nos últimos anos, ia à missa acompanhando minha mãe, nas viagens que fazia à Itália no tórrido verão do Vale Padano, quando ela se abrigava numa velha casa de campo que já foi de meu bisavô, onde se guardam as lembranças mais antigas de minha família, marcadas pelo pioneirismo e pelo bom caráter.
Para ela, minha companhia na missa dominical a deixava mais satisfeita que um título mundial do Sada Cruzeiro. Íamos à antiga igrejinha perto do moinho que já foi de minha família e nas mãos dela evoluiu desde o século XVII até sua venda na década de 70, dirigido por meu pai, que aí me iniciou nos “segredos do trigo”.
O padre era paquistanês, e seu italiano esbarrava em dificuldades, mas bem-assimilado pelos fiéis, que o viram substituir um “parroco” de extensas relações, tipo dom Camillo, aquele dos filmes da década de 50, que se passavam justamente no cenário da província de Parma.
Minha mãe, no fim da missa, radiante ao se desprender da assimilação com a hóstia que a inundava de felicidade e graças, me apresentava com os olhos cintilando: “Este é Vittorio, meu filho...”. As pessoas se aproximam e lembram-se de fatos da juventude, das proezas que eu consumava correndo de moto, namorando donzelas que jazem deletadas em minha memória de limitados megabytes.
Dessa igreja permanecem invariados o cheiro, a fonte batismal cavada num bloco de mármore barato, que assistiu ao escorrer da água benta sobre minha cabeça, segura pelos braços de um casal de padrinhos que já não existem mais.
A missa moderna perdeu sua majestade com aquela decoreba que não deixa acreditar muito na presença de um Deus no ambiente. Tenho saudade da missa em latim, língua forte e marcial, de vibrações mágicas, mais que o abracadabra.
A palavra é número e música, vibração por excelência que num rito precisa fazer vibrar a alma, despertar a intuição, usar os incensos, folhas e músicas. O latim é inigualável. O “miserere nobis” soa melhor que “tenha piedade de nós”. Assim são “panis angelicus”, “mater Dei”, “divinae misercordiae”, “agnus Dei qui tollis pecatta mundis”, “sicut in caelo et in terra”, “kyrie eleison”, aleluia “credo in Deus Pater”. Amém.
Sons imponentes sacodem a alma. “Mater Sanctissima”, lembro-me do meu passado de coroinha versando água nas mãos do sacerdote, tocando campainhas em gélidas e enevoadas manhãs, e dos arrepios nos rituais que me faziam sentir na pele a vida monástica. Saudade implacável de inocência, de frescor, de paixões juvenis, de família, de notas de fundo de um “Cinema Paradiso” onde o intérprete principal é um menino como eu fui e põe para chorar até o mais duro dos espectadores. “Fiat voluntas Tua.”