Prestes a tomar posse como presidente do Superior Tribunal Militar (STM) - um dos órgãos máximos do Judiciário brasileiro, responsável pelo julgamento de crimes previstos no Código Penal Militar - a ministra Maria Elizabeth Rocha concedeu uma entrevista a O TEMPO por vídeochamada, de sua casa em Brasília. Na quarta-feira (12 de março), vai se tornar a primeira mulher a assumir a presidência após vencer a eleição, em 217 anos de história do tribunal.
Nascida em Belo Horizonte em 29 de janeiro de 1960, é bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa, e doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Tem ainda um pós-doutorado em Direito Constitucional na Universidade Clássica de Lisboa.
A ministra integra o STM desde 2007, depois de ter sido indicada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em seu segundo mandato. O tribunal é composto por 15 ministros, sendo cinco civis e dez militares, distribuídos entre quatro vagas para o Exército, três para a Marinha e três para a Aeronáutica. Desde que ingressou no STM, tornou-se a primeira mulher a integrar o tribunal, a primeira a ocupar a presidência interinamente em 2014 e a primeira a ser eleita para o cargo.
Na entrevista, a ministra defendeu a apuração minuciosa dos atos de 8 de janeiro e da suposta tentativa de golpe de Estado em 2022, com o devido direito de defesa dos acusados. A mineira de Belo Horizonte também falou sobre a importância do filme “Ainda Estou Aqui” para que os crimes cometidos na ditadura militar não sejam esquecidos e sobre os desafios que as mulheres encontram para ocupar espaços de poder. Ela adiantou a O TEMPO que seu discurso de posse terá um tom feminista.
Confira abaixo os principais momentos da entrevista e o vídeo completo:
Qual a importância de Belo Horizonte e Minas Gerais na sua trajetória de vida? A senhora mantém suas raízes aqui?
Eu já estou em Brasília há muitos anos, mas eu nunca perdi contato com Minas Gerais. Meu pai é da Zona da Mata, minha mãe é do Sul de Minas, de Caxambu, e eu nasci em Belo Horizonte. Tenho família na capital e também no interior. E a minha trajetória em BH é cheia de boas lembranças, de memórias felizes, do Clube da Esquina, que eu acompanhei sentada nos muros do Sacré-Coeur, onde eu estudei. Então eu realmente tenho um apreço muito grande por Minas Gerais. Tenho grandes amigos e amigas que ainda vivem aí. E eu posso dizer que Minas foi extremamente importante em todos os sentidos; primeiro, pela minha formação, pelo meu “mineirês”, que eu nunca perdi e faço questão absoluta de manter, pelas boas faculdades em que estudei, pelos professores maravilhosos que eu tive. Estudei com grandes professores, tanto na PUC Minas quanto na UFMG. Então, eu só tenho boas lembranças de Minas Gerais. Aos 25 anos, eu fiz o meu concurso para procuradora federal, fui aprovada em primeiro lugar e me mudei, porque era uma exigência do cargo, para o Rio de Janeiro. E lá eu vivi muitos anos, fui professora lá e também em Minas Gerais, e conheci meu marido, na sala dos professores da Faculdade Candido Mendes, em Ipanema. Nós nos casamos, ele é militar, foi promovido a general, veio para Brasília e eu o acompanhei. E aí a minha trajetória foi se diversificando muito em termos de exercício da profissão.
A senhora é a primeira mulher a ser eleita presidente do STM. Os desafios são maiores pelo fato de ser mulher?
Eu não vou negar, os desafios são muito maiores. A minha eleição comprovou isso, porque eu fui eleita por um voto de diferença – o meu voto –, e eu sendo a mais antiga dentre os civis, porque a presidência no Superior Tribunal Militar é rotativa. Quem preside o tribunal atualmente é a Aeronáutica. Nesse próximo biênio, me postarei no dia 12 de março, quando serão destinadas as cadeiras (de dirigentes) aos civis que ocupam o tribunal. Posteriormente, virá a Marinha e, por último, o Exército. Então é uma presidência rotativa de forma a privilegiar todas as forças, de manter a paridade entre as Armas, como se fala, de civis, Aeronáutica, Marinha e força terrestre. E não vou negar, foi difícil. Eu sou a primeira mulher e eu sou a única mulher na Corte mais antiga de Justiça do Brasil, criada em 1808 por dom João quando ainda era príncipe regente. Então, veja bem, é uma Corte bicentenária, e realmente nós, mulheres, temos que quebrar ainda tetos de vidro. E aí eu brinco, não são apenas tetos de vidros que nós quebramos. Nós quebramos paredes, nós quebramos a casa inteira, porque ainda existe determinado preconceito dentro da sociedade, o Estado ainda é patriarcal, ainda é misógino. Então, para que nós possamos ocupar os nossos espaços e buscar a igualdade, a isonomia, que está formalmente garantida na carta política, na Constituição, mas que materialmente ainda não se perfez na sua integralidade, é preciso muita luta. Eu brinco que muita sufragista morreu para que hoje eu pudesse me sentar numa cadeira dessas. Felizmente, eu não fui ameaçada de morte. Mas as minhas lutas e as violências que eu sofro hoje são simbólicas. E eu espero, sinceramente, estar contribuindo para a construção de uma sociedade mais igualitária, mais justa, e que aqueles que virão depois de mim, as mulheres mais jovens, possam usufruir dessas lutas.
Qual é a sua contribuição para o tribunal que não estaria presente em um colegiado exclusivamente masculino?
A minha visão de mundo. A visão da diferença. Porque a mulher não é pior nem melhor do que o homem, ela é diferente. E a diferença, dentro de um Estado democrático de direito, tem que ser respeitada e tolerada. Então, eu acho que o meu grande papel ali é marcar a diferença entre seres humanos, de forma que todos nós, com as nossas identidades, que são únicas e que nós não podemos rejeitar, sejamos incluídos nos espaços de poder, nos momentos de fala, e possamos ser ouvidos também nas nossas reivindicações, que são fidedignas e são republicanas.
A senhora poderia adiantar qual será o tom do seu discurso de posse?
Um tom pró-equidade, um tom feminista, que eu sou assumidíssima, e em favor das mulheres, em favor das minorias, de todos nós que de alguma forma ainda somos alijados em espaços que são preestabelecidos numa sociedade que não tem mais espaço para isso. Ou seja, hoje, a democracia exige que as minorias sejam ouvidas e respeitadas e que a voz da maioria as contemple também dentro dos espaços de poder e dentro dos discursos e das políticas governamentais. Então, meu discurso será todo nesse sentido, em favor da inclusão, em favor da alteridade, em favor da equidade, que é o que eu pretendo desenvolver na minha presidência, e, obviamente, da transparência, que é um dos pilares sobre os quais eu vou fazer questão absoluta de nortear a minha gestão, e a defesa do Estado democrático de direito.
Por que é importante existir um Superior Tribunal Militar?
O que o diferencia da Justiça comum? Porque nós somos uma Justiça que tem por função e missão constitucional manter a hierarquia e a disciplina dentro dos quartéis. A Justiça militar federal é uma Justiça eminentemente criminal. Ela julga os crimes militares definidos em lei. E nesses crimes estão incluídos como agentes perpetradores, como réus, criminosos, civis e militares. Nós não julgamos os crimes dos militares, mas os crimes militares. E os crimes militares também podem ser cometidos por civis. Qual é a nossa importância? É justamente preservar a cadeia de comando, que não pode ser rompida, que não pode ser quebrada em um Estado democrático de direito. Todos nós vivenciamos o que aconteceu no 8 de Janeiro e os seus desdobramentos, que ainda repercutem e continuam repercutindo no Supremo Tribunal Federal. Nós não somos uma Corte marcial, não somos um tribunal de exceção; muito pelo contrário, das nossas decisões cabe recurso ao Supremo Tribunal Federal. Nós atendemos a todos os princípios do Estado democrático, como o contraditório, a ampla defesa, todas as possibilidades são dadas ao réu para que ele possa se defender. E, depois da nossa decisão, se envolver matéria constitucional, cabe recurso extraordinário ao STF.
Recentemente, a PGR apresentou ao STF uma denúncia formal contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 33 pessoas, entre eles vários militares, por uma tentativa de golpe de Estado. A senhora considera essa investigação importante?
Sem dúvida alguma. É fundamental apurar e descer a minúcias o que aconteceu no 8 de Janeiro. Quando nós pensamos, e eu realmente acreditei, que na promulgação da Constituição Federal em 1988 a democracia estava consolidada, me surpreendi ao ver que não é bem assim, que a democracia e a Constituição são projetos inacabados, intergeracionais, que nós temos que zelar e cuidar a todo momento para que o estado de exceção não retorne. Eu li a denúncia, são 272 folhas. É uma denúncia bastante consistente, que tem começo, meio e fim. O procurador geral da República, Paulo Gonet, é um jurista de escol, é um homem experiente frente ao Ministério Público, e acredito que agora caberá à Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal recebê-la ou não. Se for recebida – respeitando-se todas as nuances do devido processo legal, que é abertura de prazo para defesa, apresentação de testemunhas, que é fundamental, que o devido processo e o direito da ampla defesa e do contraditório sejam observados –, aí caberá, então, durante a persecução penal, se houver realmente a instauração de uma ação, se verificar o que de fato aconteceu no 8 de Janeiro e no período que o antecedeu.
A senhora considera que a democracia esteve de fato ameaçada com essa suposta tentativa de golpe?
É preciso aguardar o recebimento da denúncia e os desdobramentos que dela virão, porque eu acho que muitos episódios ainda serão descortinados. Mas eu, sem dúvida alguma, depois de ter lido os indícios – porque por enquanto são indícios, não são provas, que estão contidos na peça exordial –, eu diria que nós corremos um sério risco, sim. E eu acho que realmente se consolidaria um golpe, caso o presidente Lula e o vice-presidente não pudessem tomar a posse como deveriam. Os ritos tradicionais da eleição e do sufrágio teriam sido quebrados. E esse rompimento, nas boas escolas jurídicas, é considerado um golpe. Então, é preciso realmente agir com cautela, não fazer prejulgamentos antecipados, mas os fatos que foram narrados são bastante preocupantes e muito contundentes.
Como a senhora acha que é a percepção da sociedade em relação às Forças Armadas atualmente?
Não é boa, eu reconheço. Agora, a transparência e a sessão penal também vão aclarar muitos detalhes, porque as Forças Armadas, se nós estamos aqui nos reportando, não aderiram. À exceção do almirante (Almir) Garnier (ex-comandante da Marinha), os comandantes do Exército e da Aeronáutica, e o alto comando de todas as Forças, incluindo o da Marinha, não estavam cientes dessa tentativa de golpe. E mais, o comandante do Exército falou claramente – e eu ouvi isso nos trechos da delação que a imprensa está noticiando – e foi enfático ao dizer que o Exército não iria aderir a esse golpe e muito menos a Aeronáutica. Então, também é injusto que se atribua às instituições militares a pecha de golpista, porque elas não são. Ao contrário, elas foram extremamente legalistas. Elas não aderiram a qualquer tentativa, e não se pode “pinçar à la carte” militares que queriam dar um golpe na democracia e confundi-los com toda uma instituição; isso não é verdade. Tem ali, pontualmente, 32 militares que estão arrolados como indiciados nessa pretensão penal. Não se pode, então, confundir o joio com o trigo, porque, afinal de contas, a delinquência acontece em todos os setores da sociedade. Os militares são homens normais como quaisquer outros. Então, há aqueles que delínquem e aqueles que se conservam dentro dos limites da legalidade da ética. Então, eu entendo que o “éthos” das Forças Armadas não deveria ser questionado.
Essas denúncias sobre o golpe vão chegar ao Superior Tribunal Militar em algum momento?
Talvez sim, e, em determinada hipótese, com certeza. Talvez sim porque, se durante a instrução penal, caso a denúncia seja recebida pelo Supremo Tribunal Federal, se detectarem crimes militares, ou seja, crimes que somente os militares podem cometer, como, por exemplo, ofensa a superior hierárquico, aí o Ministério Público Militar deverá e certamente oferecerá uma denúncia junto ao Superior Tribunal Militar, porque somos nós que temos competência para julgar, como eu disse, esse tipo de crime, esse tipo de delito. Agora, para além disso, aqueles que forem condenados, aqueles que obtiverem uma pena, por exemplo, superior a dois anos, serão submetidos a uma representação de indignidade/incompatibilidade com o oficialato. E aqueles que forem condenados a menos de dois anos – o que eu acho difícil – serão submetidos a um conselho de justificação. Tanto a representação de indignidade quanto o conselho de justificação são tribunais de honra. São aqueles tribunais do STM, e só eles, porque a competência é exclusiva e privativa, poderão dizer se aquele militar que hoje veste a farda, esteja na ativa ou na reserva, tem condições de permanecer integrando as Forças Armadas. Caso não tenha, ele será excluído, é a chamada “morte ficta”.
Na esteira do filme “Ainda Estou Aqui”, a senhora é a favor ou contra a anistia, tanto para os crimes denunciados agora e os crimes cometidos na ditadura por militares?
Eu sempre defendi que a Lei da Anistia é incompatível com a Carta de 1988. Ou seja, ela foi revogada em muitos dos seus dispositivos pela Constituição de 1988, que é a lei maior do país, e a Lei da Anistia é anterior. Esse é um ponto. Mas o Supremo decidiu que a Lei da Anistia, posteriormente à promulgação da Constituição atual, era válida. Então, o que o Supremo tem que discutir é a sua própria jurisprudência – como é que ele entendeu na época e como é que ele entende hoje. Eu entendo que a Lei da Anistia, em muitos dos seus dispositivos, não prevalece mais. E, com relação à anistia do 8 de Janeiro, vão se anistiar réus que sequer foram julgados pelo Supremo Tribunal Federal? Eu até entendo, particularmente, que algumas penas têm sido muito elevadas. E eu sou uma garantista. Eu defendo que a prisão tem que ser o mínimo possível, eu acredito na ressocialização do detento, eu acredito no letramento daquele que delínque e na sua reinserção na sociedade, no aprendizado. Mas acho que tudo tem um momento próprio e adequado. Falar hoje em anistia, quando nem se julgaram todos os réus, me parece muito precipitado.
A senhora assistiu ao filme? O que achou?
Assisti, foi um filme que me emocionou profundamente. Ele foi aplaudido na sala de exibição, e eu saí com lágrimas nos olhos, até porque eu tenho uma história muito parecida na minha família. Eu tenho um cunhado que é desaparecido político. Meu marido é um general, filho de um general que já faleceu. E, no entanto, o meu cunhado Paulo Costa Ribeiro Bastos é um desaparecido. Ele foi preso, torturado e jogaram o corpo no mar. Então, é uma dor que eu conheço de perto. E por isso eu digo que a ditadura não escolhe vítimas. Do metalúrgico ao filho do general, todos nós estamos vulneráveis a um estado de exceção, a um Estado autoritário. Ninguém se salva dele. Não importa de quem você seja filho, não importa quem sejam os seus amigos, o estado de exceção, a ditadura massacra a todos indistintamente, e o massacre é tão doloroso porque ele perdura por gerações. Não é como uma morte que se encerra no funeral. É uma morte social que se prolonga por décadas e décadas e dói nas famílias, e dói em todos aqueles que vivenciaram o que foi uma ditadura. Eu acho que quem pede o retorno da ditadura é porque não sabe e não viveu as agruras que uma ditadura causa individualmente, para cada um, e coletivamente, para toda a sociedade.
A senhora acredita que sua vivência em uma família de um desaparecido pode ter influenciado sua visão política, sua percepção sobre o papel dos militares e sua perspectiva de vida?
Na verdade, eu sempre tive uma visão progressista sobre a política. Meu pai foi um dos fundadores do PDT em Minas Gerais, eu sempre discuti política em casa, e ele sempre foi um democrata liberal, que me ensinou que esses valores têm de ser preservados. Eu tinha 4 anos quando 64 foi desfechado. Mas eu acompanhei e posteriormente estudei nos livros de história. A minha tese de mestrado, inclusive, foi sobre a articulação do Golpe de 64 – não sobre o regime militar. Então eu estudei e continuei estudando a história do Brasil. Mas é lógico que conhecer de perto essa dor, que até então eu nunca havia vivenciado, me fez acirrar ainda mais as minhas convicções de que não há salvação fora da democracia. A democracia pode ter suas imperfeições, ela pode ter suas falhas, e ela merece muitas vezes ser criticada, mas ainda é o melhor regime político que nós temos.
Qual a opinião da senhora sobre o papel do filme “Ainda Estou Aqui” no resgate dessa parte da história do Brasil?
Avivar a memória. Avivar a memória porque, muitas vezes, aqueles que não vivenciaram ou aqueles que vivenciaram, mas não sofreram na pele o terror de uma ditadura, o horror de uma ditadura, por vezes se esquecem do que ela significou. Hoje, quem é que comenta, eu te pergunto, a ditadura de Vargas, a ditadura do Estado Novo? Praticamente ninguém. Porque tanto os atores políticos da época quanto os personagens já estão falecidos. E foi uma ditadura que caiu no esquecimento. E foi dura. Eu até considero a Constituição de 1937 do Estado Novo varguista pior do que as Cartas de 1967 e 1969 dos militares. Então, veja bem, o papel do filme foi avivar a memória, sobretudo daqueles que não a presenciaram, e mostrar que as dores ainda estão aqui e que nós a sentiremos de uma forma ou de outra. Não importa se elas caíram no esquecimento, mas elas continuam como uma ferida aberta, que lateja, que machuca, que é dolorosa dentro de uma sociedade que teve a infelicidade de viver um regime político e essas consequências autoritárias que nos causou.