Ao fim de uma exibição do filme “Sem Chão”, vencedor do Oscar 2025 na categoria “Melhor Documentário”, no Cine Belas Artes, no bairro Lourdes, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, um homem gritou “viva Hitler” após as luzes se acenderem. Conforme relatos feitos a O TEMPO por pessoas que estavam na exibição, os gritos foram proferidos depois que outros telespectadores gritaram “Palestina livre”. O longa foi produzido por dois diretores palestinos, Basel Adra e Hamdan Ballal, e dois diretores israelenses, Yuval Abraham e Rachel Szor, e acompanhou por cinco anos as constantes ameaças de expulsão e destruição de casas por parte do Exército de Israel vividas pelo diretor Basel Adra e os demais moradores de um conjunto de vilas localizado na região sul da Cisjordânia. O documentário estreou oficialmente no Brasil na quinta-feira (13 de março). Segundo a assessoria do cinema, não há registro de outros desentendimentos políticos no local.
Os telespectadores ouvidos pela reportagem preferiram manter o anonimato. O fato ocorreu na sessão das 16h50 de domingo (9 de março). Conforme relatou uma mulher, a sala estava cheia, e o homem gritou a frase duas vezes. “Ao final, ao acender das luzes, alguém da plateia gritou ‘Palestina livre’ e ouvi eco de outras pessoas. Nisso, um homem de cerca de 70 anos, branco, sentado na primeira fileira, gritou em seguida ‘viva Hitler.’ As pessoas pareciam assustadas e comentaram, ‘que absurdo’. Ele se levantou e gritou mais uma vez ‘viva Hitler’”.
Segundo essa mulher que estava presente na sessão, a pessoa que a acompanhava se revoltou com a atitude e foi atrás do homem. “Eu e meu amigo saímos da sala, junto com outras pessoas, vimos que o homem saiu na frente, desceu as escadas e seguia em direção à cafeteria do Belas. Na área em frente à portaria, que fica logo depois da escada, o meu amigo gritou: ‘nazista, fascista’. O homem olhou para trás como se nada tivesse acontecido e se sentou numa mesa com conhecidos”, afirmou.
O amigo da mulher confirmou a história: “atônito pela situação e pelas reações das pessoas na sala de cinema, o segui pelo prédio, e a plenos pulmões o acusei de nazista, para o espanto e alerta de quem estava presente. Me senti extremamente perplexo pela certeza de impunidade de seu ato, em pleno cinema do Belas Artes, e numa reação emocional e racional não pude agir de outra forma. Ainda que pudesse representar algum perigo para mim ou para os demais presentes, não achei lógico compactuar com um ato hediondo dessa maneira”, relatou.
A mulher apontou que a gerente do cinema estava na porta do prédio e perguntou o que tinha acontecido. “Eu e uma outra mulher que tínhamos assistido ao filme e ao incidente explicamos para a gerente, que disse que ele é cliente do Belas”.
Frequentador regular
A gerente do Cine Belas Artes, Rogéria Marcelino, afirmou à reportagem que não conhece o homem pelo nome, mas confirmou que ele frequenta o local regularmente. “Ele sempre assistiu a filmes aqui, nunca tive problema nenhum com ele. Eu fiquei sabendo por terceiros que na hora que acabou o filme ele gritou 'viva Hitler'. Na hora que ele entrou (no edifício), vinha um cara também e xingou ele, xingou até alto, gritou, aí que eu fui ver o que estava acontecendo”, relatou.
Procurada, a assessoria do cinema afirmou não ter conhecimento de outros desentendimentos por questões políticas no local.
Ato pode ser considerado crime
O advogado Négis Rodarte, criminalista e conselheiro seccional da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Minas Gerais (OAB-MG), afirmou que o ato pode ser considerado um crime. O especialista ressaltou que não pode comentar diretamente sobre o caso, mas explicou que a conduta pode configurar, em tese, o crime de apologia ao nazismo. “No Brasil, esse delito se adequa ao tipo penal previsto no artigo 20 da lei 7.716 de 1989, ou seja, aqueles delitos resultantes de preconceito e ofensa de raça e cor”, pontuou.
“O delito de apologia do nazismo consiste em praticar, induzir, instigar ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, religião ou procedência nacional. A pena é de reclusão, de um a três anos e multa, e essa pena ainda pode ser elevada a um patamar de dois a cinco anos e multa quando esse delito for praticado por intermédio de meios de comunicação ou publicação de qualquer natureza”, completou.
Rodarte explicou que é necessário avaliar se a pessoa teve a intenção de induzir, instigar ou incitar a discriminação. Se isso fosse comprovado, ela responderia a uma ação penal, com direito à defesa. O criminalista destacou que a atitude não está protegida pela “liberdade de expressão”: “Em 2003, o STF já deliberou que o direito à liberdade de expressão não engloba a apologia ao nazismo".
Antissemitismo
A reportagem também conversou com Carol Almeida, curadora da Mostra de Cinema Árabe Feminina e pesquisadora de Cinema, que avaliou a situação como “sintomática”. “É sintomático que isso tenha acontecido justamente na sessão desse filme, que é um filme feito por dois diretores palestinos e dois diretores israelenses, um filme totalmente pela libertação da Palestina e um filme que reivindica esse lugar pelo fim do apartheid que acontece naquele Estado há muitos anos. É muito sintomático que alguém, em resposta a uma ‘Palestina livre’, pronuncie essa coisa absurda que é um viva a um dos maiores representantes do genocídio humano, que é a figura de Adolf Hitler”, analisou. “Se isso foi uma resposta ao ‘Palestina livre’, isso para mim é a prova de que o projeto sionista do Estado de Israel não protege os judeus. O projeto sionista é, em vários momentos, ele mesmo, é antissemita”, avaliou.
Enquanto o antissemitismo se refere à discriminação contra judeus, a pesquisadora define o sionismo como um movimento criado antes da Segunda Guerra Mundial pelo jornalista judeu austro-húngaro Theodor Herzl, que defendia a existência de uma terra prometida para os judeus. “Que é justamente o território da palestina, que já estava sendo ocupado pelo povo palestino. Quando acontece a Segunda Guerra, o projeto sionista do Theodor Herzl, que já tinha se apagado na história, ressurge com força”, diz.
Na opinião da pesquisadora, a postura do Exército israelense acaba, consequentemente, fomentando o antissemitismo no território onde está o Estado de Israel. “Quando você cria um Estado supremacista em que os judeus merecem aquele território e o povo árabe não merece aquele território, você está criando um Estado étnico, um Estado supremacista em que uma determinada etnia merece morar ali, e outra etnia, que já estava ali, precisa sair do território. Então, com base nessa premissa, você vai criando, inevitavelmente, um antissemitismo dentro do próprio território”, avaliou.
Ela também mencionou uma cena do documentário para reforçar sua análise: "é muito perverso o que o Estado de Israel faz, porque o Estado de Israel não protege, e inclusive isso é falado no filme. Yuval (Abraham), que é um dos diretores israelenses, fala no filme que isso que o Exército de Israel faz, destruindo aldeias inteiras na Palestina, não protege ele, muito pelo contrário: deixa-o mais vulnerável”.