Atingidos pelo rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, há quase 10 anos, membros do quilombo de Gesteira seguem lidando com as consequências do mar de lama que atingiu o território. Dentre as indenizações estimadas em R$ 170 bilhões, o valor de R$ 8 bilhões foi reservado para indenização por danos coletivos a comunidades indígenas, quilombolas e tradicionais – o quilombo localizado em Barra Longa não foi incluído entre o grupo.
"O mesmo governo que nos dá certificação como povo quilombola e reconhece uma dívida histórica com o nosso território é o mesmo governo que nos exclui da repactuação", criticou a representante do quilombo, Simone Silva, em referência ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Além da União, o contrato entre a mineradora Samarco, municípios e pessoas atingidas pelo rompimento da barragem, também contou com a participação do Ministério Público e dos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, dois dos Estados mais afetados pela tragédia.
"Nós tínhamos o IPCT (Câmara Técnica Indígena e Povos e Comunidades Tradicionais), que era uma Câmara Técnica voltada para os povos tradicionais – quilombolas, ribeirinhos, indígenas. Fizemos várias tentativas para sermos incluídos, enviamos diversos e-mails, participamos de várias reuniões pedindo a inclusão do Quilombo da Gesteira. Todas as vezes nos foi negado", relatou. "O Jarbas (Vieira da Silva), representante do Governo Federal responsável pela IPCT, respondeu (à Fundação Renova) que não éramos quilombolas. Mesmo com nossa certificação oficial, fomos ignorados", completou.
Simone relembrou uma reunião realizada em 18 de outubro, em Belo Horizonte, "supostamente para explicar a repactuação à população". Segundo ela, durante a ação, "tudo já havia sido decidido" sem participação do grupo. "Nós, quilombolas tradicionais, temos o direito garantido pela OIT 169 de sermos consultados e participarmos das decisões que nos afetam. Esse direito foi completamente desrespeitado pelo governo federal, pelo governo Lula", disse.
"As instituições de Justiça que diziam falar por nós – Defensoria Pública, Ministérios Públicos – nunca levaram o quilombo da Gesteira para a mesa de repactuação. Fizemos uma manifestação no MPF, só saímos de lá depois de sermos recebidos por um dos representantes, que admitiu nunca ter ouvido falar no Gesteira na mesa de repactuação. Isso é criminoso!", relatou Simone.
Segundo ela, com a exclusão, foi oferecido que os membros do quilombo acessassem outros programas de repactuação, como o Programa de Transferência de Renda (PTR). Para o acesso, no entando, é necessário que os membros tenham o acesso ao Cadastro de Agricultura Familiar (CAF). "Levamos o superintendente do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), responsável pela emissão dos CAFs no governo Lula, até o nosso território. Ele viu a nossa situação, gravou vídeos, registrou tudo o que falamos. Mas, até agora, nada. Nenhum retorno, nenhuma resposta", relatou.
Impactos do desastre
Há quase 10 anos, em 5 de novembro de 2015, a barragem do Fundão, localizada no subdistrito de Bento Rodrigues, se rompeu provocando o vazamento de aproximadamente 44 milhões de metros cúbicos de lama e rejeitos de minério, que atingiram o território do quilombo da Gesteira e percorreram 675 km. "Nós falamos que fomos atingidos, porque a lama passou e acabou com a nossa história, com a nossa identidade, com a nossa cultura. A parte baixa (do quilombo) foi destruída e a parte alta ficou ilhada, sem água, sem luz, sem alimento, sem medicamentos", relembrou Simone.
"O que aconteceu com Gesteira é criminoso. O nosso território foi riscado do mapa, assim como Bento Rodrigues e Paracatu. Perdemos entes queridos que morreram de depressão, tristeza, sem aguentar esperar a reparação", relembrou. A ativista conta que, na própria família, perdeu o tio e avó com três meses de diferença. "Não tivemos tempo nem direito de chorar nossos mortos. Tivemos que transformar nosso luto em luta. E seguimos perdendo pessoas: várias mortes por câncer, muitas delas causadas pela contaminação", acrescentou a quilombola.
Um dos membros afetados pelo desastre é a filha de Simone, a pequena Sofia, de 10 anos. "Ela é uma das contaminadas, tem metais pesados no sangue. Tem uma inflamação gravíssima no cérebro, no intestino. Nada de atendimento médico pelo governo de Minas, nem pelo governo federal. Eles não têm protocolo. Eles não têm uma clínica, um médico que você possa procurar para estar buscando atendimento médico", desabafou.
Esperança em Londres
Fora da repactuação articulada pela Justiça brasileira, Simone afirmou que vê a ação movida contra a BHP Billiton na Justiça inglesa como "única esperança" para o quilombo. "Essa é a única coisa em que temos esperança e convicção. Oramos, intercedemos, tiramos momentos de clamor no nosso grupo, porque a única reparação que nos resta é Londres. Infelizmente, no Brasil, não há justiça. E é preciso parar com esse discurso de que 'a justiça é cega'. Nada disso! A justiça convém a quem ela quer. Precisamos usar a nossa peneira, a nossa cultura, para arrancar essa venda da Justiça brasileira, que exclui o quilombo da Gesteira da repactuação", afirmou.
Conforme já divulgado pela BHP Billiton, a repactuação do acordo de reparação por Mariana não vai atender a maioria das pessoas que participam da ação movida contra a anglo-australiana, que é uma das responsáveis pela Samarco, no Tribunal Superior de Londres. Cerca de 370 mil solicitantes não são elegíveis e, por isso, não serão contemplados pelo acordo brasileiro, segundo informado pela empresa em balanço financeiro do segundo semestre de 2024.
O governo federal e o diretor das Mesas de Diálogos, Jarbas Vieira da Silva, sobre a situação do quilombo da Gesteira. Até o momento, não houve retorno. O espaço segue aberto.