BRASÍLIA - Um grupo majoritariamente composto por mulheres realiza, nesta quarta-feira (19), o primeiro ato do movimento “Criança não é mãe” na Câmara dos Deputados, em Brasília. Elas pedem o arquivamento do Projeto de Lei (PL) 1904/24, que equipara ao crime de homicídio a realização de aborto após 22 semanas de gestação. A pena pode variar de 6 a 20 anos de prisão. 

Os manifestantes também pretendem entregar uma carta ao presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), solicitando o arquivamento da proposta. O documento foi assinado por 35 entidades. Os principais lemas ecoados pelo grupo serão: “Criança não é mãe” e “Arquivamento do PL 1904”.

Em entrevista à reportagem de O TEMPO em Brasília, a ex-candidata ao governo do Distrito Federal, assistente social e integrante da Frente pela Legalização do Aborto e Descriminalização do Aborto no DF, Keka Bagno, destacou a importância da manifestação no atual contexto político.

“Infelizmente, o Brasil é um país inseguro para a vida das mulheres e meninas. Este projeto representa uma afronta à nossa dignidade ao tentar criminalizar mulheres que têm o direito ao aborto legal. É um direito conquistado há décadas em nosso país, e que agora enfrenta o fundamentalismo religioso e o conservadorismo político,” afirmou.

Uma das principais críticas ao texto é que ele propõe uma pena mais severa para as mulheres que realizarem abortos decorrentes de estupro do que para os agressores. O projeto prevê uma pena de 6 a 20 anos para as mulheres, enquanto a pena para os estupradores varia de 6 a 10 anos para vítimas adultas, e de 8 a 12 anos para vítimas menores de idade.

Atualmente, o aborto é permitido no Brasil em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto. Enquanto os dois primeiros cenários estão previstos no Código Penal de 1940, o último foi permitido pelo Supremo Tribunal Federal em 2012. Não há, no entanto, um limite de semanas para a realização do procedimento.

Keka ressaltou que, com o projeto, mais uma vez “tenta-se legislar sobre o corpo das mulheres e meninas”. Na avaliação dela, as principais vítimas serão as meninas, uma vez que muitas crianças e adolescentes, vítimas de violência sexual no país, não compreendem o processo de abuso que sofrem.

“Muitas vezes, os principais agressores são pais, padrastos, tios, homens em quem essas meninas confiam e que usam relações de poder e afeto familiar para manter o segredo das violências. Quando elas procuram o direito ao aborto legal, muitas já estão em estágios avançados da gestação, colocando suas vidas em risco”, afirmou.

Ainda segundo a assistente social, o ato desta quarta-feira (19), convocado principalmente por mulheres mães, é simbólico e reforça a narrativa de que "criança não é mãe". “Estamos juntas para defender as vidas de todas as meninas, mulheres e pessoas que gestam. Este levante feminista envia uma mensagem importante ao nosso país: a conquista de direitos só é alcançada por meio de muita luta e ocupação das ruas” defendeu.

A proposta teve sua urgência aprovada de forma relâmpago pela Câmara dos Deputados na última quarta-feira (12), tornando possível a votação do texto principal em plenário. Na terça-feira (19), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), anunciou que a discussão sobre o projeto será adiada para o segundo semestre

“O colégio de líderes deliberou debater esse tema de maneira ampla no segundo semestre, com a formação de uma comissão representativa (para debater o tema). Que desta forma, o açodamento ou as perguntas não terão como fluir, porque nós só iremos tratar disso após o recesso, na formação dessa comissão”, disse Lira.

Setores como a bancada evangélica pretendiam que a votação ocorresse nas próximas semanas, mas a repercussão negativa do projeto, tanto nas ruas quanto nas redes sociais, inviabilizou essa intenção. O texto é de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) e outros 31 parlamentares

STF x CFM

O avanço do projeto também foi uma resposta a uma decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Ele emitiu uma liminar anulando uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que dificulta o aborto decorrente de estupro. Também fica proibida a abertura de novos procedimentos baseados na mesma norma.

A resolução do CFM proíbe a utilização de uma técnica clínica, chamada assistolia fetal, para a interrupção da gravidez com mais de 22 semanas oriunda de estupro. O órgão chegou a suspender o exercício profissional de médicas que realizaram o aborto nesses casos, fato que chegou a gerar manifestações na sede do Conselho Regional de Medicina, em São Paulo. O tema será julgado no plenário do Supremo.