Investigação

PF: Como Duque de Caxias virou epicentro de fraude em cartões de vacinação

Investigação que indiciou Bolsonaro mostra como suposto esquema era comum em cidade comandada por prefeito que negava riscos da Covid-19 e era contra vacinas

Por Renato Alves
Publicado em 19 de março de 2024 | 15:59
 
 
 
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A Prefeitura de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, teve papel essencial no suposto esquema de fraude de cartões de vacinação contra Covid-19 que resultou no indiciamento do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e mais 16 pessoas.

Investigadores levantaram provas de que o secretário de governo do município, João Carlos de Sousa Brecha, e a secretária municipal de Saúde, Célia Serrano da Silva, usaram suas senhas para inserir informações fraudulentas no Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI), do Ministério da Saúde. Mas não foram só eles. 

Subordinados de ambos participaram da fraude, de acordo com a Polícia Federal, que, além de políticos, tiveram amigos familiares e amigos dos investigados como beneficiários. À época, Duque de Caxias era administrada por Washington Reis (MDB). Aliado do ex-presidente Jair Bolsonaro, no início da pandemia, ele negou os riscos do coronavírus e dispensou medidas de isolamento social. Forçou a reabertura de escolas no auge da infecção e, evangélico, recomendou que a população usasse “a máscara da fé” para ir às igrejas e templos.

Com a chegada da vacina, adotou o discurso de “vacina boa é vacina no braço”. Mas à maneira dele. Contrariou as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Plano Nacional de Imunização. Organizou um calendário próprio de vacinação que desrespeitava a ordem de prioridades determinada pelo Ministério da Saúde e incluiu diferentes grupos e idades no mesmo dia. Atraiu uma multidão à principal praça da cidade, causando aglomeração, empurra-empurra e deixando muita gente exposta sem conseguir voltar para casa imunizada. 

Reis ignorou até determinações do Ministério Público e da Justiça do Rio de Janeiro nos tempos da pandemia. Mas acabou sentenciado a 7 anos e dois meses de prisão em regime semiaberto, por crime ambiental, em um caso de 2016 – ele responde a mais de 170 processos pelas mais diversas acusações. Para não cumprir a pena, vem apostando nos mais diversos recursos. No fim do ano passado, pediu um indulto natalino. O Supremo Tribunal Federal (STF) negou.

Irmãos que dominam Duque de Caxias são citados em relatório da PF

Depois de ter sido deputado estadual, deputado federal e prefeito de Duque de Caxias por dois mandatos (2005-2008 e 2017-2022), Washington deixou o cargo inicialmente para se candidatar ao Senado pelo Rio de Janeiro. Foi anunciado como candidato a vice-governador na chapa de Cláudio Castro (PL), mas renunciou à candidatura após essa ser indeferida por causa da condenação por crime ambiental.

Ainda quando era candidato a vice na chapa de Cláudio Castro, Washington Reis foi alvo de operação que investiga um suposto favorecimento na contratação de uma cooperativa de trabalho pela Secretaria de Saúde de Caxias quando ele comandava o município. O contrato e aditivos ultrapassaram R$ 563,5 milhões em pouco mais de dois anos.

Com a reeleição de Castro, Reis foi anunciado como secretário estadual de Transportes, cargo que assumiu em 2 de janeiro de 2023 e onde se mantém, mesmo com a condenação. Com 57 anos, ele lidera uma família de políticos filiados ao MDB que domina Duque de Caxias e inclui o atual prefeito, Wilson Miguel dos Reis, de 71 anos, seu tio, seus irmãos, o deputado federal Gutemberg Reis e o deputado estadual Rosenverg Reis. 

Os três irmãos são citados no relatório final da PF sobre a investigação a respeito dos cartões de vacina falsificados, enviado ao STF e tornado público nesta terça-feira (19). 

“Novas trocas de mensagens entre Claudia Helena e servidores da prefeitura de Duque de Caxias, reforçam os indícios de um grande esquema de inserção de dados falsos de vacinação envolvendo políticos do município”, diz trecho do relatório. Ele se refere a Cláudia Helena Acosta Rodrigues da Silva, chefe da central de vacinação de Duque de Caxias na administração de Washington Reis.

Mensagens indicam que fraudes em cartões eram comuns na prefeitura

Peritos recuperam mensagens de áudio, texto e vídeo trocados por servidores do município evidenciando que os computadores vinham sendo usados sistematicamente na falsificação de comprovantes de vacina contra Covid-19, por ordem de autoridades. Algumas mensagens são seguidas de emojis e memes. Como aquelas em que Cláudia Helena trocou com subordinadas.

Em uma dessas trocas de mensagens, Cláudia Helena e outra servidora falam das fichas de vacinação do pastor evangélico Cláudio Soares Duarte e chamam Washington Reis de “Batoré”. Também citam Heitor de Souza Queiroz Filho, a quem se referem como “Delegado que vai me livrar de Bangu”, seguidas da mensagem “In off” e emoticons com a boca fechada por zíper.

Em outro diálogo, Cláudia Helena postou um emoticon com a boca fechada por zíper, que geralmente é usado para transmitir o conceito de silêncio ou segredo. Nesse caso, o emoji é seguido de imagens das fichas de vacinação dos irmãos Washington Reis, Rosenverg Reis e Gutemberg Reis – este indiciado por inserção de dados falsos em sistema de informações e associação criminosa.

Para os investigadores, essa foi uma evidência de que tais cartões foram fraudados por Claudia Helena, a mando de superiores. Entre elas, Célia Serrano, secretária de Saúde de Duque de Caxias, que, assim como Cláudia Helena, foi indiciada por inserção de dados falsos em sistema de informações e associação criminosa. 

Filha de secretário pediu para pai não fraudar dados dela

Outros dois agentes públicos do município indiciados pelo mesmo crime são Camila Paulino Alves Soares, enfermeira da prefeitura, e João Carlos de Sousa Brecha, o ex-secretário de Governo de Duque de Caxias.

Em um dos diálogos recuperados pela PF, a filha de João Carlos pediu que seu pai não falsificasse os dados sobre a segunda dose da vacina contra a Covid-19 no cartão dela. A menina deixou claro para o pai que não precisa da fraude porque tomaria a segunda dose, conforme indicado por cientistas.

A filha do secretário contou, em um grupo de mensagens no Whatsapp, em 13 de junho de 2022, que havia recebido a primeira dose do imunizante contra a Covid-19. Já em outra conversa, de 19 de outubro de 2022, a menina diz ao pai: “Eu vou tomar a vacina do covid segunda dose segunda não falsifica pfv [sic]”. Em resposta, o secretário municipal escreveu: “Ta bom meu amor. Vc é mto corajosa [sic]”.

Militar ligado a Mauro Cid acionou prefeitura de Duque de Caxias para fraude

A PF espera informações do Departamento de Justiça dos Estados Unidos para saber se Jair Bolsonaro e pessoas próximas dele usaram cartões de vacinação falsificados para entrarem no país. Caso isso tenha ocorrido, todos podem responder por “novas condutas ilícitas”.

A PF concluiu que Bolsonaro “agiu com consciência e vontade” no suposto esquema de fraude de cartões de vacinação que tiveram ele e a filha Laura, de 12 anos, como beneficiários. Apesar de ter concluído esse inquérito, a PF destacou, em relatório ao STF, que aguarda informações do governo dos EUA para apurar mais crimes.

Além de Bolsonaro e Laura, quase todos os outros investigados viajaram para os EUA em um período que o país exigia comprovante de vacinação contra Covid-19, por causa da pandemia. E todos diziam publicamente não terem sido vacinados, pois eram contra as vacinas. Propagavam que elas podiam, inclusive, causar sérios danos.

A equipe de O TEMPO em Brasília teve acesso à conclusão do inquérito, que tem 231 páginas e perdeu o sigilo nesta terça-feira (19) após decisão do STF. Ele detalha a investigação, com trechos de depoimentos e cópias de documentos que os investigadores apresentaram como provas. 

“Os elementos de prova coletados ao longo da presente investigação são convergentes em demonstrar que JAIR MESSIAS BOLSONARO agiu com consciência e vontade determinando que seu chefe da Ajudância de Ordens intermediasse a inserção dos dados falsos de vacinação contra a Covid-19 nos sistemas do Ministério da Saúde em seu benefício e de sua filha LAURA BOLSONARO”, diz trecho do relatório.

Segundo os investigadores, o tenente-coronel Mauro Cid, na condição de ajudante de ordens de Bolsonaro, imprimiu os comprovantes de vacinação falsas de Bolsonaro e Laura dentro do Palácio da Alvorada. Cid disse ter recebido ordem do antigo chefe para cometer a fraude.

“Resta evidenciado que Mauro Cesar Cid, no exercício das atividades de chefe da Ajudância de Ordens da Presidência da República, por determinação de seu superior hierárquico, solicitou a inserção dos dados falsos de vacinação contra a Covid-19 em benefício do ex-Presidente e de sua filha Laura Firmo Bolsonaro”, diz outro trecho do relatório da PF.

As informações, que haviam sido dadas por Mauro Cid em acordo de delação firmado com a PF, foram comprovadas por peritos na investigação que resultou no indiciamento de Bolsonaro, seu ex-ajudante de ordens e mais 15 pessoas. 

Cid diz ter recebido ordem de Bolsonaro

Duas das páginas narram a confissão de Mauro Cid sobre a fraude que ele disse favorecer Bolsonaro e Laura. O ex-ajudante de ordens, que é coronel do Exército, afirmou ter sido procurado pelo então presidente após saber que ele tinha cartões de vacinação contra a Covid-19 em seu nome, da mulher e das três filhas, mesmo dizendo que nenhum deles nunca havia recebido dose alguma.

Ainda segundo Cid, Bolsonaro pediu que tudo fosse da mesma forma fraudulenta, com inserções de informações falsas no sistema do Ministério da Saúde. Cumprindo a ordem, Cid contou ter procurado Ailton Gonçalves Barros, ex-major do Exército que concorreu a deputado estadual no Rio de Janeiro pelo PL em 2022. 

Assim como já havia feito para Cid e família, Barros enviou os dados de Bolsonaro e Laura ao secretário de Governo de Duque de Caxias, João Carlos de Sousa Brecha, que usou suas senhas para inserir informações fraudulentas no Sistema de Informações do Programa Nacional de Imunizações (SI-PNI). Os beneficiados pela fraude nem precisariam dos cartões físicos de vacinação, podendo imprimi-los quando e onde quisessem.

Após ser comunicado do sucesso da fraude, Cid narrou que, por meio do ConecteSUS, imprimiu os comprovantes de vacinação em nome de Bolsonaro e Laura em uma impressora do Palácio da Alvorada e os entregou pessoalmente ao seu então chefe. Cid contou ainda que teve o cuidado de imprimir os cartões com em inglês porque sabia da intenção de Bolsonaro em usá-los para a planejada viagem aos Estados Unidos nos últimos dias do seu mandato, para não passar a faixa presidente a Luiz Inácio Lula da Silva (PL). À época, assim como a maioria dos países, os EUA exigiam comprovante de vacinação contra Covid-19. 

Com as informações de Cid, a PF conseguiu chegar a quem inseriu dados falsos no sistema do Ministério da Saúde. Na operação Venire, desencadeada em maio de 2023 para levantar provas sobre a inserção de dados falsos de vacinação contra a Covid-19, agentes apreenderam a impressora que teria sido usada por Cid para imprimir os cartões de Bolsonaro. Assim como dito por Cid, peritos conseguiram comprovar que os downloads foram feitos dias antes e na própria data da viagem de Bolsonaro a Orlando, na Flórida, segundo relatório entregue ao STF.

Foram quatro emissões, sendo três em 22, 27 e 30 de dezembro de 2022. O ex-presidente embarcou para os Estados Unidos com a família em um avião da FAB em 30 de dezembro, horas depois do acesso ao sistema, ainda de acordo com a PF.

 

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